Alexandra (I)

Alexandra ondulava de frio. Sob o seu longo vestido preto de organza encontrava-se um corpo fraco de lutar e uma alma dorida fruto das intempéries enfrentadas.

Do mundo de onde vinha não existia o ambiente gélido e desolador que agora a rodeava.

Seis guardas reais escoltavam-na até ao grande palácio onde sua Alteza Real, o rei da Má Sorte, governava os calistos.

De olhos colados ao chão, percorreu o caminho indicado sabendo de antemão qual seria o seu destino.

Chegou.

As grandes portas de ferro abriram-se de par em par.

Lá dentro, sua Alteza Real, de costas voltadas, proferiu:

– Já desistiu? – a voz saia-lhe ríspida e firme.

– Agora que fala nisso, sim. Desisti de lhe enviar flores para que atendesse às minhas súplicas. Desafio-o para um duelo pela minha honra! – havia força e determinação nas suas palavras.

– Será decapitada como merece pela desfaçatez e pela ousadia. – informou amargamente.

– Audaz fostes vós que pensais ser detentor da verdade quando vos dirigis com tamanhas palavras à pessoa que tendes em frente! Sem mais demoras aproximemo-nos do campo de batalha. – permaneceu de cabeça erguida com os olhos raiados de cólera.

– Sereis morta donzela, sem qualquer tipo de piedade, que a afronta que ousastes perante mim, nunca outrora se viu. Colocarei em seus olhos as moedas para que o barqueiro vos leve para o mundo de onde nunca devíeis ter saído. – disse virando-se repentinamente de espada em riste na direção de Alexandra.

– Que sabeis vós sobre o mundo que outrora habitei? Que sabeis vós sobre o real motivo da minha vinda a este mundo? Que sabeis vós… Guardai convosco as moedas que agora me ofereceis pois serão elas a vos salvar a honra aquando do vosso último suspiro dado na terra seca onde o vosso corpo encontrará, finalmente, descanso eterno. – a voz tremia-lhe em puro desalento.

– Comerei o pó e pagareis com a vida tamanha audácia… Pedi a vossos servos que vos preparem a pira onde ardereis até que somente sobrem cinzas do que fostes. Sereis mulher sem glória e sem história. Atearei o fogo com as vossas folhas e os vossos escritos. – uma raiva profunda inundava-lhe a alma.

– Que vedes vós em mim para que o vosso pensamento creia que vivo? No mundo de onde venho as labaredas caem em cascata dos meus longos cabelos dourados e sopro as cinzas com que pretendeis ameaçar os comuns mortais. – observava-o em reprovação.

– Sois um demónio que só a minha espada destruirá. Não sejais insolente. Sereis prensada na dama de ferro. – um esgar de horror moldava-lhe as feições.

– Nada me poderá deter. A sua espada nada é perante a persistência que encerro em mim para que a mais cruel das vinganças recaia sobre vós! – a sua mente cintilava parecendo ver através daquele corpo que a ameaçava.

– As suas vinganças não têm poder sobre mim. Sou um espírito superior! E vós sois apenas sombra que será trespassada pelo meu espírito luminoso!!! – disse tacitamente vislumbrando os vitrais que davam cor à sala.

– Da sombra surgirá a luz com a qual ofuscarei a vossa presença. – fechou os olhos e inspirou profundamente.

– A minha presença jamais será ofuscada por um ser tão vil como vós. – encarou-a.

– Não sois bem vindo ao meu mundo! Não sois herdeiro dos poderes celestiais. – cerrou os olhos ainda com mais força.

– Nem eu quero entrar no vosso mundo cinzento. No negrume com que tingistes a vossa alma. – acrescentou.

– Apartai-vos dos caminhos secretos por onde deambulo e talvez possais permanecer intacto. – seus olhos continuavam fechados.

– Não necessito da vossa clemência porque eu não terei nenhuma perante vós. – reforçou.

– E que fareis quando o motivo da vossa ira se dissipar? O que fareis quando eu já não existir e apenas o pó em que me transformastes vos recordar do ser cruel em que vos convertestes? – perguntou.

– Irei sentir regozijo por ter eliminado tal ser… Serei levado em braços pelo povo por tamanha glória… Por ter dissipado da humanidade as nuvens negras com que vos vestíeis. – sustentou-lhe o olhar.

– Aceito, por fim, tal destino. Não mais me vereis. Nunca. Definho. E, por fim, morro. Para vosso regozijo. Adeus para sempre. – inclinou a cabeça, fitou a pedra fria e cinzenta daquele chão e ajoelhou-se em sinal de derrota.

– Sois uma fraca! Levantai-vos e morrei com dignidade! – segurou-a pelo braço e levantou-a.

– De pé perante vós. – disse erguendo a cabeça na direção de sua Alteza Real.

– Perante mim, ajoelhai-vos e olhai para o chão. – soltou-a mirando-a de alto a baixo.

– Recuso tal provação. Podeis trespassar-me com a vossa espada enquanto o meu olhar se fixa no seu. – observou-o..

– Sabeis que o vosso olhar faz brilhar o meu e tentais demover-me desse modo. – deu um passo em frente e aproximou o seu rosto do dela.

– De forma alguma. Se sois forte como dizeis demonstrai-o e trespassai-me agora mesmo com a arma que orgulhosamente exibis. – manteve-se imóvel enfrentando-o.

– Não posso, donzela. – disse, fitando-lhe o olhar e segurando-lhe o pescoço com uma mão.

Apesar de robusta, aquela mão não a apertava como seria de esperar. Permanecia encostada à sua pele imaculadamente branca onde encontrava algum repouso.

– Podeis sim. Agora mesmo sem perder tempo. Que a vossa coragem dignifique a minha tão desejada partida. – o orgulho fazia-se presente em cada frase.

– Ficai! Atentai no que lhe faço chegar ao ouvido… – aproximou-se um pouco mais.

– Aqui retida perante vós? Pretendo ir-me de uma vez para que chegue ao fim tamanha desconsideração. Deixai-me partir. Agora. Para sempre. – suplicou baixinho.

– Jamais a deixarei partir… Ficai e sereis tratada com a honra que mereceis. – beijou-lhe o rosto e deteve-se cheirando o perfume do seu cabelo.

– Por que muda a sua vontade de não mais me ver desfeita em pó, longe do seu mundo? – pela sua face escorria uma lágrima.

– Basta para isso que deixais de me afrontar através da tinta da pena. – secou-lhe a lágrima com a boca num beijo demorado.

– Jamais tal desejo poderá ser convertido em realidade. Não posso ceder aos caprichos e orgulhos infundados com que me contempla. E muito menos compactuarei com o que designa submeter a quem consigo discorda. – argumentou com bravura.

– Não pretendo submetê-la, doce donzela. E acredite que os meus caprichos são bem mais requintados do que estes. – sorriu-lhe com doçura, passou as mãos pelo seu rosto, pelos seus braços e pousou-as na sua cintura.

Alexandra tremeu ao sentir no seu corpo as mãos do seu opositor que, embora carregasse em si pura contradição de sentimentos, fazia palpitar um pouco mais forte o seu frágil coração.

– Apenas não pretendo que oferecereis as vossas palavras publicamente! Quero-as todas para mim! – bafejou-lhe a verdade perto dos lábios envolvendo-a em simultaneo num forte abraço.

– Sem submissão seguirei afrontando-o. Entendei que as palavras que enuncio com o meu coração e que fielmente registo para um dia futuramente recordar, não me pertencem. São livres e obedecem somente à vontade que têm de conhecer o mundo longínquo. – contemplou-lhe o olhar.

– Se levais avante essa loucura então deixo-vos partir para sempre! – soltou-a num grito angustiante, empurrando-a para o chão onde caiu e se magoou.

– O fascínio pelos caminhos incertos que as palavras hão de seguir, impelem-me a rumar ao desconhecido. Deixo-o agora mesmo, no local onde se encontra, por amor à loucura que habita em mim. Sigo! – vociferou furiosa, de respiração entrecortada num profundo desgosto.

– Que os deuses a acompanhem. – verbalizou, insensível, virando costas.

Alexandra chorava de forma incessante enquanto o seu corpo inerte jazia no chão paralisado que lhe dilacerava a alma.

– Assim seja. – sussurrou inaudivelmente.

– Assim será. – findou.

E rapidamente, sua Alteza Real, entrou nos seus aposentos sem olhar para trás.

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