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Que Censura é Esta?

O primeiro contacto com uma atitude woke deu-se numa notícia, (2018? 2019?): uma universidade inglesa alterou as regras dos cachet’s pagos aos palestrantes, depois de um judeu se ter mostrado ofendido por uma piada de um humorista convidado pelo instituto, durante a comunicação para a qual havia sido contratado. Lembro-me de ter pensado Mais uma daquelas palhaçadas americanas: já chegaram a Inglaterra.

Chegaram não só a Inglaterra, mas ao resto do mundo.

As guerras culturais entraram na sociedade ocidental, e em particular do meio académico. Como em tudo, há um sentido de justiça por trás de algumas das causas por elas defendidas, mas há também um aproveitamento para que a radicalização de determinadas posições possa passar sob a égide do respeito pelo outro, sobretudo se esse outro pertencer a uma minoria que historicamente tenha sido perseguida. Separar o trigo do joio nem sempre é fácil ou claro.

Os teóricos do movimento colocam-no num reposicionamento histórico contra enviesamentos de que nem nos damos conta – racismo, machismo, homofobia, etc. – sobrando para os restantes o lugar de privilégio, aos quais tantas vezes é exigido que peçam desculpa à partida, antes ainda de qualquer manifestação. Com este preâmbulo – uns são privilegiados, atirando contra os outros um preconceito do qual nem se dão conta, tal o enviesamento potenciado por décadas ou séculos de reforço histórico – qualquer base para uma discussão séria acerca do movimento woke fica comprometida. Não que não exista preconceito ou enviesamento – obviamente que existe – mas resvalar para uma generalização não é só abusivo: é perigoso.

Manifestando-se em diversas dimensões, esta atitude tem na Política de Cancelamento, no Policiamento da Linguagem e na Apropriação Cultural os três vectores mais vistosos. Se bem que quase nada neste mundo se reduza a preto e branco, os perigos destas manifestações são facilmente reconhecidos.

No Canadá, livros de Tintim, Asterix e Lucky Luke foram queimados numa “cerimónia de purificação pelas chamas” por humilharem os povos nativos, a L’Oréal proibiu determinadas palavras como branco, claro ou luminoso, por sugerirem que uma pele mais clara seria mais bonita, a HBO retirou temporariamente da programação E Tudo o Vento Levou, por manifestar posições racistas da autora, Margaret Mitchell (mais tarde repô-lo, com um documentário alertando para os sinais de racismo na obra), tradutores do poema de Amanda Gorman foram cancelados (não pela própria, mas por activistas), por não serem mulheres negras, como a autora (aconteceu em Espanha e nos Países Baixos, pelo menos), e poderíamos continuar indefinidamente a lista de exemplos de posições do movimento.

O problema nem são as ideias uma vez que, numa sociedade global, o debate entre posições contrárias é saudável; o problema é quem ousa insurgir-se contra esta religião (porque por vezes é de um fanatismo quase dogmático que falamos) ver-se muitas vezes cancelado, cancelamento esse escondido sob a capa de “escolha editorial” ou “opção programática”. Outro problema é o empobrecimento da linguagem numa contínua redução, iterada após iterada, ad absurdum, tornando-a inerte e disfuncional para aquilo que ela deveria servir, comunicar de uma forma rica e trabalhada, com o objectivo último de ninguém se sentir ofendido com o termo Homem, Ele ou Luz. O próprio termo acoplado à linguagem – inclusiva – contradiz-se pela base. Por fim, o pináculo: a apropriação cultural, que por estas bandas ecoou nas tranças da Rita Pereira, que supostamente se apropriou de um aspecto da cultura negra e, segundo os críticos, não tinha esse direito!

Este é o problema do movimento: ao invés de debater as questões, entrincheira-se num tribalismo, até agora mais típico da extrema-direita, e cancela, proíbe, ataca, humilha, até que os atingidos, cansados de verem os seus nomes jogados em tamanho lamaçal, recuam, chegando por vezes a pedir desculpa! Os outros, calam-se, atitude entre a cobardia e a necessidade de preservação da paz de espírito.

Alguma literatura começou a aparecer sobre o assunto, como o ressabiado A Religião Woke de Jean-François Braunstein, ou A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman, este muito mais profundo, se bem que orbitando em torno do tema sem nunca o abordar de uma forma clara e frontal. O tribalismo é uma crítica presente em ambas as obras. Além do tribalismo (versus o universalismo), Neiman, mulher de Esquerda, aponta a demissão da luta pela justiça (em prol do poder) e a desvalorização do progresso (versus a constante menorização do mundo actual), como os principais sinais deste movimento que fazem com que ele, no seu entender, não seja considerado de Esquerda.

Pouco me importa que as críticas venham da Esquerda ou da Direita. Ver livros serem queimados, palavras proibidas ou pessoas expulsas por causa das suas ideias (e não das acções), era algo que eu julgava ultrapassado.

No entanto, o facto de muitos dos soldados que se vangloriam de lutar pela causa woke serem, eles mesmos, pequenos ditadores, não nos deve fazer esquecer a parcela bem-intencionada por trás do movimento. A adequação de papéis a intérpretes mais apropriados para os fazer levanta questões interessantes: se hoje não aceitamos actores brancos com a pele pintada de negro (como acontecia nas décadas de 50 ou 60), até onde deveremos ir nesta adequação entre os papéis e os seus representantes? Um obeso só pode ser representado por um obeso? E um idoso? E uma prostituta? Um homossexual? Não é difícil perceber a facilidade em cairmos no absurdo (como a peça interrompida no São Luis por uma transexual queixando-se de que um papel, em palco, deveria ser representado por alguém da comunidade trans).

Separar as coisas é urgente: defender um grupo ou indivíduo contra a perseguição ou o preconceito de que é alvo é uma coisa; obrigar a que somente membros desse grupo possam representar o grupo numa peça ou num filme, é outra.

Até Jim Sheridan, realizador de O Meu Pé Esquerdo, num acto de reconhecimento ou solidariedade para com o movimento, veio defender não ser correcto hoje um actor sem deficiências retratar um personagem portador de uma deficiência (no filme, Daniel Day-Lewis representou Christy Brown, um homem com paralisia cerebral que aprende a pintar com o pé). É a essência por trás do trabalho de composição de um intérprete que fica posta em causa.

Este é para mim o maior problema: onde é que se traça a fronteira entre o que é ou não aceitável? Um gordo pode fazer de gordo (escrevo “gordo” propositadamente: , a palavra é, para o movimento woke, “problemática”), mas se um actor magro engordar? E se um actor magro for caracterizado para tal? Quem define o que é ou não aceitável? E aceitável para quem?

O problema é mais vasto: da comunicação dos media, vertical e de sentido único, que havia até à década de 90, passámos para uma comunicação horizontal e em rede, com o advento da internet e das redes sociais. As marcas comuns a gerações inteiras (todos jogávamos os mesmos jogos, víamos os mesmos programas, etc…) pulverizaram-se em milhares de canais por cabo, streaming, etc… e numa mesma janela temporal já não existe mais uma geração, mas muitas gerações de indivíduos cujo único traço que têm em comum é a idade. Ficou assim muito mais difícil traçar este limite entre o que é aceite e o que é considerado falta de respeito, bom senso, ou educação, quando as referências deixaram de ser as mesmas entre indivíduos da mesma faixa etária.

De uma coisa estou convicto: quando o cerco aperta e tudo começa a ser proibido (e a proibição pode ser instigada de diversas formas, como o cancelamento, o bullying ou a alteração dos vocábulos de modo a dificultar a comunicação de ideias de que alguns discordem), então a reacção é mais violenta. Mais: proibir sem debater é uma atitude muito pouco democrática, e por mais que se defenda ser em nome da liberdade ou do respeito que determinadas atitudes se justificam, se os fins (mesmo que nobres), justificassem tais meios, teríamos que aceitar métodos semelhantes da tribo do lado contrário, mesmo discordando das ideias dessa tribo.

PS: Gosto dos livros de José Saramago como gosto dos filmes de Elia Kazan. Um saneou jornalistas do Diário de Notícias; o outro denunciou comunistas no tempo da caça às bruxas. Por causa deles, pessoas perderem os seus empregos. As obras de um e de outro são geniais. Confundir a apreciação do seu trabalho com a defesa das suas posições é um atentado à capacidade de reflexão e à liberdade individual (estou a ser simpático). Todos temos o direito de usufruir ou não das suas obras: é uma opção que cabe a cada um e não uma imposição que um grupo deva impor à generalidade da população. Seja A Minha Luta ou O Pequeno Livro Vermelho. Confundir o leitor, espectador ou ouvinte com o conteúdo da obra revela uma lacuna essencial para a compreensão e o movimento em direcção ao outro. Assim se normaliza a condenação de alguém por ler A Minha Luta, por exemplo. É ignóbil. Além de muito pouco democrático. 

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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