40 anos depois

Foram muitos os episódios que fizeram esses dias de 1974 e 1975 e mesmo em 76, que não eram a morna realidade rotineira dos dias de hoje. Recordo-me de um, que vivi ao minuto, na minha terra, o Funchal. Eu tinha pulsado desde o primeiro momento do 25 de Abril de 74, com o desenrolar dos acontecimentos, capitaneados pelo Movimento das Forças Armadas. Um ano após, ainda estávamos todos imbuídos desse espírito de agitação política, sem saber como os acontecimentos surgiam, como se desenvolveriam, em que tudo iria dar.

O episódio decorreu no Seminário do Funchal, ou melhor, num antigo edifício outrora usado como Seminário, mas nessa altura sem uso e muito bem localizado, bem dentro da cidade.  A Diocese era proprietária, mas soube-se que não lhe era dado uso, pelo menos significativo. No contexto desses momentos, a população do Liceu de Jaime Moniz, tal como o da Escola Comercial e Industrial do Funchal, como se chamavam ainda por esses dias, era bem mais do que alguns anos antes e começava a não sobrar espaço, era fundamental conseguir-se um outro edifício. Como tanto acontecimento nesses dias, não se sabia bem como as coisas começavam, mas provavelmente alguém soube que a diocese tinha um edifício não utilizado. Outro alguém se deve ter lembrado que a solução seria ocupar o edifício. Qualquer coisa impensável, actualmente. Porém, nesses anos, o Partido Comunista tinha ocupado um edifício particular, propriedade de um psiquiatra conhecido na cidade, o Partido Socialista, ocupara um outro, e a FEC-ML (mais tarde UDP) ainda um outro e só o CDS (que mal conseguia manter uma sede, por sempre ser escorraçado pelas organizações de extrema-esquerda, FEC e MRPP) e o PPD tinham sedes alugadas legalmente. Mais tarde, tudo se legalizaria.

Um grupo de alunos dirigiu-se ao tal Seminário, entrou e “ocupou” as suas instalações, no que rapidamente foi seguido por muitos mais e, no mesmo dia, boa parte da população de alunos já estava bem dentro do edifício e o percorria, avaliando-o como seu futuro “anexo” do Liceu. Lembro-me muito bem de ter chegado o Bispo do Funchal, que se sentou durante horas, sem com ninguém falar, num cubículo qualquer, cabeça baixa, pacientemente à espera que o movimento estudantil se retirasse. D. Francisco Santana, se a memória não me atraiçoa, mostrou assim que assumia qualquer desenlace e a sua responsabilidade de primeiro interlocutor com os estudantes. Tudo pacificamente, nem um distúrbio, excepto, claro o acto em si da ocupação, que se deu sem provocar danos materiais, pelo menos significativos.

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Na noite do primeiro dia de ocupação, o Jornal da Madeira, propriedade da mesma diocese, iria publicar um artigo denunciando como perversa, revolucionária e condenável a ocupação. Era Alberto João Jardim o seu Director e ainda não era o dirigente do PSD regional. Um grupo de estudantes, conhecedor da publicação do Jornal, dirigia-se ao seu edifícío sede e instalações de impressão para impedir qualquer opinião que fosse contrária às pretensões estudantis. O meu pai, também assumido social-democrata, foi igualmente com os estudantes, pois eu e os meus irmãos estávamos quer no Seminário, quer a dirigirmo-nos ao Jornal. Entre apoiante dos estudantes e receoso de algum desenlace menos pacífico, o meu pai acompanhava-nos os movimentos e atitudes políticas. Não se trataram de atitudes claramente revolucionárias, mas antes de uma assumpção das próprias necessidades, anseios, desejos ou pretensões, julgadas justas e merecidas, como muitos dos acontecimentos que se desenrolaram por esses anos, dentro de portas ou nas ruas, com ou sem as barreiras policiais a impedir outros resultados, pelo menos temporariamente.

Nesses anos, a população, o povo, não deixava as decisões, as atitudes nas mãos de alguém, dito seu representante. Foram circunstâncias distintas, o poder político ainda não se organizara, mas o que depois se foi passando, com essa crescente organização, política e social, não foi propriamente um avanço da Democracia, pouco a pouco se transfigurando a sociedade na mesma massa apática e apenas expectante. O mesmo povo participativo, interveniente, foi deixando nas mãos de outros a decisão das pequenas (como aquela ocupação do Seminário do Funchal) coisas, como das grandes mudanças que nos têm trazido ao que hoje somos.

O povo português foi-se transformando, ao ritmo de outro tipo de expectativas, ocupando as suas visões, ânsias, desejos e vontades, com um universo de pequenas compensações materiais, desde um emprego melhor, hoje também negado ou inexistente, a objectos e tecnologias, que nos aproximariam da Europa desenvolvida, não fora as fundações do Desenvolvimento nunca se terem chegado a construir de verdade.

O mesmo povo, num reduzido lapso de quarenta anos, que antes tomara nas suas mãos o seu destino, deixa-se correr numa austeridade esmagadora e sem qualquer base na ciência económica, para num silêncio ininteligível se encontrar sem uma qualquer saída política, leia-se social, financeira, profissional, familiar, pessoal. Uma vida, milhões de vidas num beco. Por opção.

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As eleições de novo. E, de novo, uma rotina apenas. Um cumprimento cívico, um calendário democrático, cada vez mais sem vida, sem chama, sem vislumbre de mudança, de qualquer melhoria. A maioria das pessoas que ouvimos, nos confirmam esta nova letargia, esta hibernação social de um povo muito dado a se deixar conduzir, em lugar de se organizar em seu próprio interesse. Pode parecer que esta organização democrática e partidária existente é o resultado de uma sociedade social e politicamente maturada, mas o descontentamento espelha-se a cada rua, a cada esquina que se dobra, cada opinião que se ouve, hoje bem menos fundamentada do que há quarenta anos, reflexo de um trabalho de desenvolvimento cultural que ficou por fazer.

Após mais um Verão, férias esgotadas e paciências porventura também, os portugueses se dirigirão num Domingo já marcado por uma rotina também já gasta, a umas caixas pretas, introduzindo um voto que não leva a lugar algum.

Como foi possível todo um país gastar mais tempo em quarenta anos, com o imediatismo dos pequenos interesses e deixar cair as grandes causas e levar-se num triste desígnio, depois desses anos pulsantes que pareciam para sempre ter rejeitado a mordaça do deixa-andar?

Aos jovens, pouco fomos capazes de ensinar. Ensinámos porventura um materialismo que parecia havermos rejeitado, como um sonho de um dia terem melhores vidas do que as nossas. Ensinámos a melhor se preparem, para um futuro que tudo devia ser menos de incerteza. Ensiná-mo-los a olharem para nós nesta vivencia apática, desesperançada.

Um dia, penso saber, eles nos ensinarão o que ainda nem vimos, nem adivinhámos. No entanto, hoje…resta-nos, apenas, suspirar?

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