Chego a Venice Beach num início de noite de Setembro, com o sol acima da linha do horizonte a prepara-se para nele mergulhar. Deixo o carro num parque de estacionamento e já sinto saudades dele. Mesmo cansado após um dia a conduzir, olho-o e imagino-me a percorrer mais e mais quilómetros por estradas sem fim. Por ora sigo directo para o Boardwalk, longo passeio à beira praia onde se situa o pequeno e simpático hotel que me recebeu. Localizado mesmo em frente ao Pacífico, inundado de odores e cores que são as que se imagina ali encontrar, não podia ter escolhido melhor hotel para ficar.
Neste percurso sigo feliz por respirar aquela atmosfera veraneante e a primeira imagem que me fica gravada na memória, é um piano mal cuidado e pouco protegido. Parei por um segundo para o olhar e tentar descortinar a sua história. Um piano a descansar naquele local, junto à relva e muito perto do imenso areal, a ser fustigado pela humidade salgada do mar, distraiu-me de quaisquer outras considerações. Foi uma imagem que me inebriou.
Na manhã seguinte parto à descoberta da vida de Venice Beach. Vejo que o piano já não se sentia solitário. Ganhara vida com um homem corpulento, cabelo amarelo sem cor, sujo como o de qualquer sem-abrigo. Tinha os dedos grossos e sujos, as mãos estragadas pelas agruras da vida, as unhas partidas e enegrecidas. Mas aqueles dedos tocavam as teclas com a suavidade própria de quem acaricia a pele de uma mulher. E o som, esse, abafava todo o negativismo que um homem pode carregar na alma. Era a beleza sob a forma de música.
Por cima do piano tinha uma lata para as gorjetas e um visível cartão escrito à mão sem grandes cuidados. Convidava-nos para comprar um CD. E o mais inesquecível. Havia um gato de pelo comprido. Dormitava aconchegado junto da música e do seu dono, imperturbável na virtude do seu ócio de felino. Fiz uma longa pausa a ouvir a música clássica tocada com um virtuosismo que o cenário não deixava antever. Aquela qualidade ali é uma grande surpresa e deixa qualquer um com um sorriso de encantamento. Recompensei-o com uma bem merecida gorjeta, agradecendo-o por aquele momento de paz interior e segui à descoberta de Venice Beach.
Tempos mais tarde, já de regresso a casa, o acaso permitiu-me descobrir aquele homem de dedos tão sujos quanto virtuosos. Chama-se Nathan Pino, tem 61 anos, é um antigo músico profissional de San Francisco, especialista nas harmonias de Chopin, Bach e Gershwin. O propósito de o ter encontrado é que não é o melhor. Li uma triste notícia, provavelmente a mais difícil que Nathan enfrenta nos seus já descoloridos dias. É que hoje, no piano onde devia estar um gato de pelo comprido, está agora uma folha de papel com a fotografia de Baby Girl, o seu nome. A gata está desaparecida desde meados do último Outubro, poucas semanas depois de eu a ver.

Nunca mais me esqueci desta história, triste por ser da vida real. Eu vi aquela gata, aquele homem, aquele piano. Observei o efeito que ele causava em quem o observava, um misto de admiração e consternação, pautada com a magia da música bem tocada e melhor sentida. E muito da vida que testemunhei no Boardwalk, deve-se a pessoas com Nathan Pino. Pessoas de talento inquestionável mas que muitas foram atingidas pelo infortúnio. Escolhas e decisões levaram-os para ali. Não posso dizer que são a alma do local, mas certamente enchem a alma de quem por eles passa e se deixa ali ficar a ouvir.
Veem-se músicos e cantores. Uns tentam ganhar proveito da sua arte, outros ambicionam apenas uma refeição quente ao fim do dia. Duas jovens, guitarra e voz ligadas a um amplificador tocaram-me fundo com uma cover da Feeling Good, de Nina Simone. E não podiam ter escolhido melhor música. Não o fizeram com a ambição de serem recrutadas por um qualquer produtor a prometer fama e rios de dinheiro. Não o fizeram na procura simples de reunir alguns trocos que fizessem a diferença. Elas chegam ali, preparam-se, tocam e cantam, porque gostam de o fazer. E fazem-no para elas se sentirem vivas.
Este é um dos segredos dos músicos do Boardwalk. Vivem a música sem qualquer tipo de pressão, sem precisarem de agradar a quem quer que seja senão eles próprios. Conseguem-no facilmente por um outro segredo. Os sons saídos de violas, pianos e vozes, misturam-se com o odor das palmeiras, com os sons de skates e patins, com as vozes de transuentes e locais, com as ondas ali próximas, com a areia da praia trazida pelo vento. Misturam-se com a vida do Boardwalk e acabam por ser um pouco da própria vida de Venice Beach.

É difícil encontrar ali tristeza. Que reapareça a Baby Girl e devolva também o sorriso a Nathan Pino.