Adereços de Férias

Talvez para me organizar seja necessário deixar todo o ano de parte um conjunto de acessórios que nem sempre viveram escondidos à margem da rotina, mas que, com o avanço das estações, foram sendo enfiados lá para trás, para os bafios do hábito, ressuscitando, como o peixe que puxa a linha depois de horas sonolentas com a cana hirta e a linha esticada, de cada vez que as férias caiem com estrondo e me vejo a enrolar o carreto com uma ansiedade de criança, os ténis Springfield às riscas na mala, o boné Nike verde-guerra e os óculos Hawkers sacudidos dos confins do porta-luvas atafulhado do Hyundai para ganharem o direito à vida na única altura do ano em que os chamo para ir a jogo.

Como um jogador de futebol em final de carreira, cujas entradas em campo são geridas com pinças pelos treinadores mais avisados para que nós, espectadores, possamos tirar partido da arte de quem um dia nos deu tanto, também as sapatilhas, óculos e o boné, que hoje me tapa mais careca que cabelo, cumpriram, em importâncias desiguais, devo confessar, mas ainda assim, cumpriram, a sua missão.

Tenho os sapatos há sete anos, mas, dada a fragilidade e infantilidade dos mesmos, nunca me atrevi a abrir-lhes a porta de todos os dias. Os óculos foram um remendo que a Sofia me ofereceu depois de ter perdido os Ray Ban na Galp das Mercês, e que por um curto período foram titulares no jogo da vida, dado não haver outros no banco de suplentes para os substituir. Por fim, o boné, hoje datado, mas que há vinte e quatro anos deveria ser moda, comprado na Windsurf Guincho do Cascaishopping com o dinheiro das mesadas que tinha que esticar para filmes, jantares de amigos e uma ou outra extravagância, como esta.

Talvez para me organizar eu tenha remetido, certamente ao acaso, estes três objectos tão vincadamente do meu lazer, para as férias, como se a sua utilização significasse Verão, sol e o saboroso encolher de ombros de uma vida sem relógios, gerida ao ritmo da vontade ou até nem isso, apenas porque calhava: calhava acordar a determinada hora, tal como ir à praia, escrever, ler, dormitar ou fazer amor. Este acaso açucarado que aceitamos com agrado em tempo de férias é, a par do esquecimento, a nossa maior vitória contra o tempo dos relógios. É essa vitória que experimento, é esse poder que ganho de cada vez que enfio o boné, as sapatilhas às risas como as casas da Costa Nova, e as lentes espelhadas num espalhafato de turista.

Estendemos a toalha no relvado ou vamos a pé até à Guia, ao clube local ou ao Ramirez, o pôr-do-sol pela frente nestes dias crescentes de Maio com antegosto a Verão, férias na maravilhosa tranquilidade do Algarve quando fintamos as enchentes e os doces de massapão ou alfarroba sabem a degustação, não permitida nos dias apressados quando o saborear se vê entalado entre mil afazeres. Ou seguimos a pé pelo passadiço da Galé ou dos Salgados (como hoje!), comemos a degustação algarvia n’A Casa do Avô ou um gelado magnânimo na pizzaria dos ingleses em cujo terraço habita um cardume de osgas que serpenteia colado à parede entre os candeeiros que iluminam (a atrapalham) o nosso jantar, visitamos Albufeira pela n-ésima vez para notar que lugares fecharam desde a última visita e ficar com os novos, ou pelo menos aqueles que não havíamos identificado antes (a Sofia sempre mais atenta do que eu, que somente vi que a gelataria dos gelados bons, situada antes de chegar ao miradouro da escada rolante, havia fechado na última vez que cá estivemos).

Desfeito o puzzle do tique-taque infinito, chinelamos todo o dia com excepção dos períodos em que caminhamos ou saímos à noite, para jantar ou em passeio, tal como o fato de banho e as t-shirts que só vêem a luz do dia para beijar a areia e o sal da praia: é Maio e desta vez não as trouxe, mas o fato de banho já foi a banhos, hoje, que ainda não é Maio mas o último de Abril, e lá trouxemos para o carro a preguiça dourada de poeira e areia, o restolhar da pele seca na roupa quando ainda não sabemos bem se é sal, areia ou escaldão (depende da dor durante o duche mais logo). A roupa aguenta mais antes de ir à máquina, duas ou três saídas, pois aquele metrónomo que cronometra das sete (da manhã) às dez (da noite) o período óptimo (que raio de optimização!) em que a camisa e as calças permanecem em contacto íntimo com o corpo, avaria quando o calendário virá a página e os dias a sombreado das férias ganham a luz que tudo atrasa e tudo torna possível, até inverter a ordem natural das coisas: o banho matinal deixa de ver no despertar uma razão para existir pois uma praia, caminhada ou apenas a moleza empurra-o lá mais para a tarde, antes do crepúsculo, e o sentir a t-shirt quase lavada para o jantar traz a frescura que é fazermos da vida o que queremos.

Talvez para me organizar eu tenha guardado estes adornos para os colar às férias e aos dias felizes, mesmo que os outros nos dêem a sua felicidade, sob outra forma que não esta do boné, das riscas e do espelho, e se eu quebrasse o feitiço, qual supersticioso ameaçando a sorte em apostas consigo mesmo, e resolvesse colocar qualquer destas peças (os óculos por vezes desenrascam, mas muito raramente, e digo a mim mesmo que é só porque os outros ficaram em casa e estes estão mesmo à mão, no porta-luvas), toda a vitória sobre as trevas do tempo ficaria comprometida, as riscas não seriam mais as do Verão e das férias mas um prolongamento do lufa-lufa pelo tempo sem memória, os Hawkers contaminariam, como um derrame de petróleo em alto-mar que não sabemos até onde polui, as férias, e o boné de décadas, manchado por anos de suor em que terá entrado e saído de moda umas quantas vezes sem que o tenha notado, deixará de ter este efeito de ansiolítico natural, em que tudo deixa de ter a importância que lhe dou para ter, por mais breve que seja esta semana, a importância que talvez sempre devesse ter dado.

O livro para estas férias veio de casa, e que prazer tem sido (já o era) lê-lo neste quadro – Manual Para Mulheres de Limpeza – sem preencher com leituras valiosas os buracos no horário da vida acelerada, mas desfrutar de cada conto na sala, entre não fazer nada e nada fazer, na praia ou no jardim. E que descoberta de diamante a escrita de Lucia Berlin, sempre a escorregar para o concreto da vida, e por isso prenhe de poesia (ou de tristeza, esse outro lado tão simbiótico da poesia) como todos temos, ainda que os afazeres nos distraiam de o ver (e mais ainda de o escrever).

Ainda não é Verão, mas quase Maio. A Sofia faz anos depois de amanhã e eu daqui a quinze dias. É o mês onde a estação muda verdadeiramente, em que entram em cena os caracóis e as festas de rua, em que num espirro os dias se estendem por ocasos infinitos sem que o tenhamos notado, em que os gatos se tornam dengosos nesta vida de borregar, soltos do apartamento de sempre, em que esquecemos sem nos importarmos, e ainda assim damos pelo esquecimento, numa saborosa incompletude que abraçamos, como um prato agri-doce ou sobremesa quente e fria.

Ainda não é Verão, mas quase Maio e o Benfica ganhou ontem em Barcelos. As mini-férias começaram bem. Talvez para me organizar eu necessite de estimar este trio de amuletos. Os ténis deverão ser os primeiros a lerpar, mas talvez ponha outros na calha. Os óculos e o Nike estão aí para muitos Verões, muitos Maios. Desde que hajam férias, vontade de sair, arte para esquecer o que ficou, e flutuar no silêncio dos ares do Sul.

PS: Só chegámos ontem, mas já deu para entrar em pleno no jogo.

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