O escritor que ninguém lê

O bar está cheio e ele não consegue pensar, a atenção foge-lhe para as vozes, os copos, o riso. Ele observa os gestos daquelas pessoas jovens e de olhos brilhantes, seguras, cheias de futuros hipotéticos, de gargalhadas prometidas. A sala escura, igual há cinquenta anos, e ele a apreciar na alma quente a sorte de ter esse pedacinho de tempo remoto. As mesmas mesas e cadeiras, a mesma disposição, os empregados vestidos de camisa branca e lacinho vermelho, colete escuro que brilha na luz, tratando os clientes com palavras antigas e preocupações de outrora. Aquele lugar que ele frequentava desde os vinte e poucos tinha voltado a ficar na moda e tinha-lhe roubado o silêncio que ele tanto gostava em fases de auto-comiseração.

Bebe um gole da sua sexta imperial, os gestos cada vez mais turvos e lentos, a mente cada vez mais nítida. O fumo entra-lhe nos olhos e nos pulmões. Ele inspira. Alguém acende um charuto e transporta-o por segundos a um passado onírico, que ele já nem tem a certeza de ter existido. Melhor dito: tem a certeza, mas preferia não a ter. É-lhe duro enfrentar o que se perdeu pelo caminho, o que escorregou entre os dedos quando ele nem sequer sabia que tinha as mãos rotas. Ah, o antigamente! O antigamente, onde tudo isto – os jovens, a noite, a pena que sentia de si próprio – teria sido inspiração e êxito. Agora não é mais do que um escritor caído em desgraça, relembram-lhe por vezes os jornais, ressuscitando-o dentre os grandes nomes da cultura. Alguém que foi. Foi – maravilhoso, genial, único. Que não mais é. Foi, num passado ainda mais longínquo do que os mortos, porque os mortos não têm outro remédio. Os mortos continuarão a ter sempre a mesma idade e a ser sempre génios – afinal, quem sabe o que teriam feito se a morte não lhes tivesse parado o coração? Se calhar nada; se calhar só falhanços! Mas a ilusão é mais forte e fica eternizada. E ele, que cometeu o erro de continuar vivo depois de ser magnífico, que não soube morrer a tempo, consegue ser ainda mais pretérito que os mortos.

Mais um gole. Sentia falta do whiskey. Mas para quê? Mais valia ao whiskey viver-lhe só na memória como a sua bebida favorita, porque se a voltasse a provar talvez se desiludisse. Como esses, os mortos – valiam mais na memória do que valeriam vivos.

Outro gole, para acabar a cerveja e afogar o que lhe restava de dignidade. Faz o gesto de sempre ao empregado de sempre, que com uma pequena vénia se prepara para o servir de novo.

Sobrevivente de um cancro, de três ex-mulheres e de 70 Invernos. Porra, que não é pouco! E os milhões de livros vendidos. Literalmente milhões. E as mulheres que lhe passaram pelo corpo, centenas. Foda-se, nada disto é pouco, nada na sua vida tinha sido minguado, escasso minúsculo! Mas agora era. Poucos os que o liam ainda, poucos os que iam para além do seu nome. Se tivesse morrido, tudo seria diferente. Não teria tido tempo para cair numa qualquer sombra inesperada e ser apenas um nome conceituado que só vendia livros para quem os queria colocar debaixo do braço e passar por intelectual. Seria nobre, se estivesse morto.

Mais uma cerveja fresca à sua frente. Sente-se claustrofóbico nos próprios pensamentos e precisa de ir à casa-de-banho.

O espelho, os malditos espelhos omnipresentes que se empenhavam em gozá-lo. O envelhecer tinha-o apanhado desprevenido. As rugas nas mãos dos outros, o desconhecido do outro lado do espelho, as memórias que passaram a ter idade própria, o doloroso peso das ausências.

Não se reconhece.

Não se reconhece como pessoa, nem como escritor, nem neste tempo que também deveria ser seu. Não se reconhece e é triste. Não, não; é avassalador. Não se ser mais quem era e ver o mundo deixá-lo para trás era avassalador, era de pesadelo. Lembra-se que odeia o saudosismo, sempre o odiou no pai e no avô e nos amigos e em todos os velhos que conhecia. Agora é ele o velho saudosista inadaptado, é-o há anos, sem perceber bem como chegou a esse momento. Por isso, decide que esta será a última noite da sua vida.

Sai da casa-de-banho e bebe de uma só vez a sétima imperial. Limpa a boca com a manga da camisola e sente pena de não ver mais nenhum Verão. Permanece sentado por um bocado de tempo, a mente a tentar inventar uma qualquer ideia sobre aquele copo vazio, ou sobre o espelho, ou sobre uma mão de unhas vermelhas que roçou no braço dele, que o agarrou mas pediu desculpa pelo engano. Aconteceu naquela noite ou noutra qualquer?

“Adeus, Jacinto” despede-se do empregado, agarrando-se bem ao banco. Nestas alturas o equilíbrio já não é perfeito. Põe o chapéu que comprou com os direitos de autor do seu primeiro sucesso.

“Adeus, senhor escritor” o Jacinto tinha sempre aquela pequena atenção com ele. Se calhar o Jacinto não lia e pensava que ele continuava a ser quem era. Bendito Jacinto!

“Talvez já não volte mais, sabe?” sorri-lhe ele, entre a tristeza e a resignação.

O Jacinto devolve-lhe o sorriso. Está habituado àquele discurso, tanto dele como de outros clientes que tocam no fundo naquele bar, tocam no fundo de cada vez que empinam mais um copo, mas que se conseguem sempre arrastar até ali de novo, cuspindo desabafos, esquecendo mágoas velhas e lembrando outros pecados.

“Espero-o cá amanhã, senhor escritor” lembra-lhe.

Ele encolhe os ombros, lentamente porque o álcool pesa-lhe no corpo. Sim, talvez no dia seguinte lá esteja. Depende do quão sedutor seja o fim naquela noite fria, quando ele finalmente abrir a porta da sua casa escura e vazia.

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