O braço é uma asa, é a tranquilidade do mar. Vai ao céu, volta à terra, desenha um cosmos ondulante que segue o arrepio agudo dos violinos. Da ponta dos dedos solta-se uma invisibilidade tão bonita que não se vê, um fio prateado que todos sentem roçar na pele.
Não se ouve respirar na sala.
Quatrième devant. Assemblé. Não há gritos, os olhos estão fechados, mas os braços abrem-se, o peito é uma jaula escancarada e é impossível não perceber a dor que cada gesto guarda.
Ninguém se mexe. Mexer seria voltar ao feio, ao escuro, a quem não sabe transformar a dor em beleza.
A melancolia envolve tudo, percorre a sala a alta velocidade. Grand jeté. Sons rápidos, ferozes, predadores. A tristeza é uma bala que sobe pelas nucas, que toca nos lábios e nos olhos de quem habita a escuridão, de quem se espanta com a música transformada em movimento.
Arabesque. Adage. Pássaro ferido, nota musical, grito que quer fugir pelas pontas dos pés. O corpo é um mar inteiro, é um pássaro inteiro, é a liberdade inteira. As mãos agarram os ombros, os braços fecham-se para conter um segredo. A música embala, as últimas notas são um lamento que racha os peitos. A cabeça baixa. A paralisia. O silêncio. As luzes.
Os aplausos são chuva no telhado. Uma vénia. Um meio sorriso. Evita pensar no espelho que está no camarim.
“És incrível”, dizem-lhe, entregando-lhe flores. “Foste fantástica.”
Fantástico, corrige na sua cabeça, fui fantástico.
Tira a maquilhagem. Entre os bouquets, o espelho mostra-lhe quem os outros ainda vêem. O género é um vidro alojado no peito. Repete:
“Fui fantástico.”
Despe o fato de bailarina. Mas a dor e o medo continuam vestidos, continuam a forrar-lhe a pele. Não sabe ainda como deixar de suster a respiração. Não existe equilíbrio, pois não? Só existe tudo o que se perde e tudo o que se ganha, um é sempre mais do que o outro.
Entre as flores e entre as lágrimas, no espelho, só ele consegue ver quem sempre foi.