Só se fia a maiores de 90 anos acompanhados de seus pais (e casados…)

Há dias fui visitar a minha tia-avó. Tem 84 anos, usa 2 telemóveis, e tem uma mentalidade jovem, estando sempre disponível para o mundo e as novidades. Admiro-a imenso. Para além das doenças que a idade inevitavelmente traz, mas que não deixa que a definam, tem uma inteligência emocional que me deixa abismada, percebendo a juventude e apoiando as suas escolhas, ao contrário do que é comum. Contava ela, que a neta, já adulta, fica por vezes sozinha em casa quando os pais se ausentam, mas que ela, nunca por nunca, lhe liga para o telefone fixo, não vá ela ficar a pensar que a está a controlar. Adorei este pensamento, tão livre, tão respeitador da independência alheia, tão confiante na boa capacidade da neta se autogerir sem a rigidez do controlo e da obrigação.

Não sei se já vos disse, mas adoro velhos. Não são todos os velhos, ou são especialmente este tipo de velhos, que nunca se rendem às suas dificuldades e têm sempre uma generosidade para com os outros. Muita desta minha posição, vem do facto de ter sido criada pelos avós maternos, que me mostraram que a luta nunca termina, e se não conseguem hoje, conseguirão outro dia. E se somos resultado das 5 pessoas com quem mais convivemos, quero muito ser como eles. Daqui a 40 anos, claro…

A minha avó era uma mulher enérgica, sempre cheia de ideias e iniciativas, que lia imenso e, já reformada, era voluntária numa associação humanitária. De aspecto modesto, não ficava a dever resposta a ninguém. Certo dia, fui com ela a uma loja de electrodomésticos. Ela procurava um frigorífico, e o vendedor mostrou-lhe alguns. Quando ela questionou sobre um outro, o desgraçado teve a ideia de lhe responder que era muito caro. Com o maior dos sorrisos, abrilhantado por uns vivos olhos verdes, respondeu que do dinheiro dela sabia ela, e, portanto, até ia pagar a pronto, mas noutra loja.

O meu avô foi reformado aos 55 anos por invalidez. Devido ao reumatismo e a uma prótese na anca, bem como ao facto de não dobrar um joelho, tinha alguma limitação física. Mas sabem qual era o mote da vida dele? Não dar trabalho a ninguém. Não conseguia calçar umas meias? Inventou uma vara com um gancho para o fazer. Não conseguia sentar-se num banco normal? Construiu um mais alto, que lhe permitia sentar-se com a perna esticada. Não conseguia subir a um escadote? Intercalou degraus de madeira entre os de ferro, para conseguir fazê-lo, e fui dar com ele empoleirado no topo, a cortar a figueira que teimava em lhe sujar o quintal. Sem se render, ultrapassava cada uma das dificuldades no caminho.

A minha outra tia-avó era analfabeta, de letras e números, mas dotada de uma inteligência atroz. Desembaraçada como ninguém, chegava a todo lado, e o que é de realçar, em charme. Recordo que trabalhou em casa de uma família nas Avenidas Novas, mas quem a visse, de cabelo em banana e lenço ao pescoço, facilmente a confundiria com a família abastada, tal a graciosidade do seu tom educado e meigo.

A minha outra avó fará 100 anos em março. Há muito pouco tempo, ainda falava das outras como “aquelas velhas”, algumas com menos 20 anos que ela. Ainda recentemente, alindava-se com o seu colar de pérolas que usava diariamente, com ou sem visitas, com ou sem festa.

Outra senhora que conheço resolveu iniciar-se na cerâmica. Outra ainda, no espanhol. Isto, muitas vezes entre a ida à escola dos netos e adiantar o jantar à filha. O avô de uma amiga, de 94 anos, comprou um carro novo, contra a sensata opinião da filha.

É por este tipo de velhos que nutro uma admiração sem limites. Não se escudam na idade para prematuramente se acomodarem, muito antes das falhas de saúde o imporem. São os que, até ao limite das suas forças, fazem questão da sua soberania. Gosto de pessoas que se sentem vivas até ao último dia possível, que usam toda a energia e sabedoria que têm em prole de si próprios e dos outros, dos mais novos, tantas vezes perdidos entre os afazeres impiedosos da vida.

Conversar com um velho destes é um bálsamo. É reconfortante falar com estas pessoas, para quem começámos por ser apenas uma criança, com quem brincavam, mas que hoje nos consideram de igual para igual, embora nos distemos em 40 anos. A ser necessário, é quase uma confirmação do bom caminho, da continuidade familiar ou geracional. É o reencontro com o passado, mas também com alguém que não ficou preso no tempo. A expressão “no meu tempo” é muito limitadora. O tempo deles é ainda hoje, não se fixou, não terminou. Falar com eles dá-me esperança no futuro. Não foram só as dificuldades ultrapassadas, não é a sobrevivência, é mais que isso, é o prazer de viver, de continuar a viver, a descobrir, a entender, a ser uma pessoa do seu tempo, em todo o tempo, de 1920 ao limite dos seus dias.

É difícil definir a cronologia da velhice. O meu filho, em pequeno, criou uma hierarquia na família: a avó nova, a avó velha e a avó muito velha (bisavó). Não sei se esta lógica seria do agrado das duas menos jovens, porque afinal, como disse Séneca:

“Ninguém é tão velho que não espere que, depois de um dia, não venha outro.”

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