Há muita solidão por aí. Nem só os velhos, nem só os novos, nem só os casados, nem só os solteiros padecem dela. A desconfortável unicidade é democrática e não tem preferências de género, grupo etário, escalão financeiro ou qualquer outra catalogação ou critério.
No entanto, a solidão e o isolamento da velhice são mais duros. Por um lado, porque a agilidade física é tendencialmente menor ou limitada, minorando as possibilidades de sair, e os rendimentos também são, regra geral, mais parcos. Por outro, já se perderam amigos, e a família, por muito que seja próxima e dedicada, habitualmente trabalha ou estuda, ausentando-se por períodos largos.
Contudo, nem todos os solitários são vítimas. Como assim?!
Revisito um texto da minha autoria publicado em 2018:
– Só vens agora?
– Estive a trabalhar…
– Nem sei porque trabalhas tanto, nem sequer és director… Estou desde o almoço sem comer, e apareces para jantar às 20.30?
– Porque não comeste uma fruta ao lanche?
– Isso é para meninos e engorda. Falando nisso, pareces-me mais gordo.
-Hum…
– Então e nem te aumentaram o ordenado, sequer?
– Não.
– E as aulas dos miúdos, já começaram?
– Sim.
– Obriga-os a estudar, tu és muito brando.
– Os miúdos são responsáveis.
– Achas? Só 4’s? Se fosse eu obrigava-os a estudar, tinham 5 a tudo.
– Sim, como eu.
– Não saías de casa, era só estudar, e olha lá, nem sequer és director, que faria se eu te deixasse à solta… E quando é que casas, que isso de viver em pecado não está certo?
– Não sei.
– E a Maria, já acabou a licenciatura? Nora minha… ou equiparado, vá, tem de ser licenciada, já que beleza… ui…
– Lá anda…
– E tu no voluntariado não recebes nem ajudas de custo? Já que trabalhas…
– Não, sou voluntário.
– E os miúdos não me ligam porquê? Sou avó deles, têm de me ligar!!! Qualquer dia estão como tu… ignoram-me, mal-educados!
– Estão nas actividades.
– Tu deixas-os fazer tudo o que querem… são uns mimados. Devias era obrigá-los a ligar-me diariamente.
– São miúdos, deixa-os sossegados.
– Já te contei que morreu a Alzira?
– Não sei quem é.
– Sabes, é a vizinha da Clara, a que encontramos no supermercado da Etelvina.
– Qualquer dia sou eu, tenho andado tão malzinho… aqui ando aos caídos, só e abandonada.
– Vai ao médico.
– Gastar dinheiro? Falando em dinheiro, tens de trocar de carro, que o teu está velho.
– Não penso nisso para já.
– Eu pago, mas escolho eu, ok? Vi um que…
– Não quero.
– És mesmo orgulhoso! A prima da vizinha da tia disse-me que te viu em Faro. Vais passear e não me dizes nada?
– Calhou
– Tu não me contas nada da tua vida, não sei de nada. Sei de tudo pelos outros, e é quando sei. E não percebo mesmo porque não me vens visitar mais vezes…
Pergunto-vos eu, agora: Com que frequência visitariam alguém assim?
Este retrato foi amplamente inspirado num perfil real e, infelizmente, pelos comentários que recebi, não é, de todo, coisa rara, tendo havido muitos a quem soasse familiar. Ainda assim, houve quem me criticasse duramente, porque ousei questionar dois dogmas: a velhice beatifica-nos e a morte santifica-nos.
Rui Barbosa, diplomata brasileiro, terá dito: Não se deixem enganar pelos cabelos brancos, pois os canalhas também envelhecem.
E, às vezes, essas pessoas são os nossos pais, os nossos avós. Não escolhemos a família onde nascemos, é certo, mas não podemos permitir tudo. É uma ironia que, aqueles que deveriam amar-nos acima de qualquer outra pessoa, sejam os que, toda uma vida, nos fizeram sentir insuficientes, inválidos, devedores, desamados. Maltratar não é só bater fisicamente. Os danos psicológicos, a falta de autoestima, o desalento, são mais gravosos e menos mensuráveis. Menos comprováveis, menos credíveis. Quem vai acreditar num filho ou num neto que se queixa de tal? É por certo um mimado, um ingrato! Ai os velhinhos são todos tão queridos, tão empáticos. É tua mãe, é tua avó! Até te deu comida e pagou a escola primária!!!
Os relacionamentos funcionam sempre em dois sentidos. Não se pode esperar que aqueles que foram feridos, muitas vezes ao longo de toda uma vida, venham agora cuidar de quem os feriu, só porque estes envelheceram. Não se pode ser um canalha toda a vida e depois, quando a doença e a morte espreitam, alegar vínculos biológicos, que nunca foram honrados, para exigências. Quem não fez a aplicação do apoio, do carinho, da segurança, não pode levantar juros. O trabalho é longo e, necessariamente, recíproco. Também não se pode esperar que o massacre seja apelativo e conquiste. Sobretudo em posição de fragilidade, é de pouca inteligência usar-se da guerrilha.
Ocorre-me que se não exigissem tanta atenção, talvez a recebessem. O perdão, a ser possível, é adiado ou anulado com a ira que diariamente este comportamento agressivo provoca. O pedido de desculpa, a serenidade, a compreensão pelo outro, gerariam com certeza comportamentos mais cooperantes. Mas não lhes surge tal possibilidade, ainda que cínica. Preferem manter um padrão de intratáveis, achando eventualmente que lhes dá muito charme. Não se pede desculpa aos mais novos, era o que faltava!
É preciso uma força sobre-humana para travar este turbilhão de ofensas. Parece justificar-se numa teoria educacional de que a frieza emocional e a extrema exigência de resultados formam seres equilibrados. Não formam, deformam!
A imagem que me surge tem muito de cinematográfica: alguém que empurra uma carruagem de comboio com as costas, as pernas em diagonal, os joelhos a titubear, os pés a resvalar. A carruagem trava, enfim, chiando. E o herói do filme olha em frente, em busca de um mundo novo para os seus filhos e netos. Um mundo de afecto, comunicação, empatia, respeito.