O Sol Nasce Sempre havia-me sido oferecido pelo Manuel no décimo sexto aniversário. Já nessa altura eu supunha – com razão, creio – que não tinha sido ele a escolher a prenda. Só não tinha a certeza se havia sido a mãe, Manuela, ou o pai, Mário, pessoas que eu conhecia dos meus cinco anos, quando partilhávamos a sala da pré-primária.
Mais tarde percebi que havia sido uma escolha de casal, como tantas vezes acontece com as pessoas que, à conta de tanta vida partilharem em conjunto, mesclam interesses, confundindo (e acreditando) gostarem das mesmas coisas. Talvez seja também isso que fortalece uma relação.
Voltando ao livro, recebi-o, agradeci e ficou em banho-maria, à espera do momento. Ele chegou aos dezoito quando, no famoso “ano de adaptação” à faculdade, fiz uma única cadeira, e com 10! Não se perdeu tudo pois esse foi o ano em que, em vez de estudar Matemática, arrancou definitivamente a minha carreira de leitor (não sem alguma culpa pois o prazer de ler no metro, no comboio da linha do Estoril, junto ao rio que se fazia mar, ou mesmo nas horas em que fazia gazeta às aulas, era inversamente proporcional ao meu aproveitamento).
Foi com grande curiosidade que fui percorrendo as páginas do primeiro romance de Hemingway, sem nada saber acerca do autor, para chegar ao fim sem opinião. Um conjunto de expatriados (mais tarde viria a saber tratar-se da lost generation, da qual o autor fazia parte) que faziam a vida boémia em Paris e, na segunda metade do livro, partiam para Espanha, rumo às festas de São Firmino.
Talvez este seja o livro ficcional que melhor reflecte as paixões do escritor nascido em Oak Park, Illinois, em 1899: Paris, Touradas e Mulheres. Com o tempo, a semente plantada por esta experiência foi germinando no terreno fértil do prazer e Hemingway tornou-se, a par de Hesse, Gaarder e Kundera, no grande contrapeso da minha vida universitária, quando a Matemática ainda não me havia conquistado e os livros eram a viagem possível rumo ao mundo maravilhoso da arte.
Hemingway, hoje quase um proscrito, foi alguém que teve a coragem de se assumir como um homem do seu tempo. Algumas das suas manias, preconceitos ou mesmo irascibilidade eram já, na sua altura, anacrónicas, mas ainda assim ele agarrou-as com quanta força tinha. Parte dessa força verteu-a para os livros, parte para as relações mais ou menos tórridas (além dos quatro casamentos, espelhou alguns dos seus romances nas obras que escreveu) e outra parte para o ritmo frenético com que bebia (absinto) e vivia. Tamanha vertigem esbarrou num tiro autoinfligido na cabeça, em 1961, com a pistola com que o próprio pai se havia suicidado (um mal de família).
Depois de Fiesta (o outro título para O Sol Nasce Sempre, que descobri na estante do meu pai e que ele próprio havia lido em jovem), de 1926, li (após uma referência do meu pai, depois de me ver a ler aquele livro) O Adeus Às Armas, escrito em 1929 que só pelo título ficaria gravado em mim para sempre, mas confirmou a expectativa e hoje permanece como o meu preferido do autor. Uma história de amor passada no norte de Itália, duranta a I Grande Guerra, entre um tenente americano e uma enfermeira inglesa assenta na história que Hemingway viveu quando era condutor de ambulâncias durante o conflito. O seu lado mais sombrio sobressai no personagem Frederic Henry, mas o livro é um retrato perfeito de uma guerra, de um lugar, de uma relação, e de uma época.
Parti para os seguintes e ainda com dezoito anos, completei a trilogia dos grandes romances do Nobel da Literatura de 1954, Por Quem os Sinos Dobram. De regresso a Espanha, somos convidados para o seio de um grupo de combatentes pela República, no meio do mato, na Guerra Civil de 36-39, através da história de um mercenário americano, Robert Jordan, incumbido de destruir uma ponte essencial para os fascistas. O livro deve o título ao maravilhoso poema de John Donne, que introduz a obra:
Nenhum homem é uma ilha isolada;
Cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra;
Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório,
como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria;
A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano.
E por isso não perguntes por quem os sinos dobram;
Eles dobram por ti.
Fechei os dezoito com Paris é Uma Festa!, a mais autobiográfica obra de Hemingway, que conta os anos de Paris, onde o autor viveu entre 1921 e 1926, cruzando-se com Ezra Pound, Gertrud Stein, Scott Fitzgerald ou James Joyce, alguns, tal como o jovem Hem, membros de geração perdida, americanos “esquecidos na Europa” após a guerra, que por cá se viraram. No livro visitamos os encontros e as tertúlias, os cafés e a boémia, o álcool e a noite, e todo um ambiente fervilhante que viria a marcar aquelas vidas para sempre e a levar-me a salivar pelo desejo impossível (e enganador) de querer viajar no tempo para o coração daquele retrato (na minha primeira viagem a Paris tinha “obrigado” a família a visitar os cafés de Paris que Hemingway e outros haviam frequentado; visualizar nas páginas aqueles espaços que eu conhecia, transpostos setenta anos no tempo, foi mágico).
Por esta altura, o personagem Hemingway começava a ombrear com o escritor: Cuba e a pesca, África e as caçadas, Espanha e as touradas, Paris e a boa vida, a depressão e a bebida, as mulheres e aquele orgulho de macho ferido. Tanta vida contida numa só vida.
Por fim, o trauma: O Velho e o Mar estragou de tal forma os quatro tesouros que havia lido antes que não mais regressei ao autor. Um velho que passa um livro a ferir as mãos para não perder um peixe fortalhaço que havia mordido o anzol, quando se encontrava só com um rapaz num barquito de pesca… mais de cem páginas nisto! Admito que os meus dezanove anos não fossem talhados para este tipo de pasmaceira, mas se estas memórias ergueram a vontade de voltar a pegar em algumas das obras de Hemingway, ainda não chegou a vez d’O Velho e o Mar.
A vontade de revisitar e escrever sobre Hemingway, um dos escritores mais importantes da minha vida, surgiu quando passava a vista pela estante e dei com Ilhas na Corrente. Creio que o comprei num alfarrabista e por lá ficou, ensombrado pela impressão do pescador teimoso. Talvez venha a pegar nele brevemente. Talvez não surpreenda o facto de as pessoas da minha geração (35-45) com quem falei sobre Hemingway, não se tenham mostrado muito agradadas, mas a geração mais velha sim. Talvez ao reler um dia O Adeus Às Armas venha a renegar este texto; talvez não. No entanto, permanece como um livro que me marcou como poucos, e o seu autor como um dos maiores contribuintes para a minha paixão pela Literatura.
Talvez deva agradecer ao Manuel, ou provavelmente me deva curvar perante os seus pais, Manuela e Mário, que um ou dois anos antes já me haviam oferecido a versão juvenil de Miguel Strogoff, (outra maravilha). Bastou uma singularidade para despoletar o Big Bang. Eventualmente com os livros, os filmes, as pessoas, e tudo o mais que nos acontece na vida seja assim: reunidas as condições perfeitas para pôr a máquina a rolar, só nos resta desbravar o Caminho. Ainda assim, talvez tivesse chegado aos quarenta sem pegar em Hemingway se não fosse a oferta daquela família no meu décimo-sexto aniversário. A verdade é que nunca li Faulkner, Steinbeck ou dos Passos. Nunca ninguém me ofereceu um livro deles. Os que tenho foram comprados por mim. Paradoxalmente, não é a mesma coisa.