Décadas de oitenta e noventa. Nós, então adolescentes e jovens, crescíamos na vibração de um país que respirava, finalmente, livre. Os nossos pais permitiam(-se) deixar-nos viver o que lhes fora negado. E seguíamos todos, sem consciência de que seríamos a primeira e a última geração a viver a juventude em plena liberdade.
Olhando para trás, percebo o quanto havia para correr mal. De tal maneira, que em muitos casos correu mesmo. Mas isso é o que sabemos hoje. Os pais de então não sabiam. Como podiam saber? Se a sua juventude em nada se assemelhou à nossa. Condicionados pela família e pelo regime, a terem de começar a trabalhar demasiado cedo em muitos casos, a serem impedidos de namorar quem queriam ou, pelo menos, quando e como queriam. Eles, a partir para África no auge da juventude, elas a ficar a chorar sem saber se os veriam voltar. A diversão foi para a maioria daquela geração uma excepção à regra e a liberdade um sonho que chegou numa época já cheia de responsabilidades.
Tudo isto uma realidade com então poucos anos, mas para nós, os jovens da altura, tão longínqua como o Jurássico. Para a minha geração, viver em liberdade era tão garantido como respirar. É certo que existiam regras e horários, para uns mais do que para outros, mas entre a hora de sair e a hora de chegar, éramos perigosamente livres e nada nem ninguém nos controlava. E sim, em alguns casos deu asneira. As circunstâncias, conjugadas com a imaturidade, promoviam os excessos e o tabaco, o álcool e as drogas fizeram, para muitos, parte do pacote. Mas para quem resistiu – ou sobreviveu – a tudo isto, é inegável o privilégio que nos foi concedido.
A sorte, de todos os que vivemos esses gloriosos momentos, foi o facto de tudo isso ter acontecido antes da era digital. Os momentos embaraçosos, as noites que correram mal, foram e continuam a ser apenas lembranças entre amigos. Não nos confrontámos no dia seguinte com a nossa foto disseminada pela internet, a retratar um momento de que nos envergonharíamos para todo o sempre. Não precisámos de apagar as três mil setecentas e trinta e quatro fotos registadas no telemóvel e nas redes sociais, sempre que terminámos uma relação. Era rasgar a meia dúzia de fotografias que guardávamos em papel e seguir caminho.
Na verdade, tudo corria bem, até a tecnologia ter arrancado os telefones das paredes. Para os pais de adolescentes na altura, foi um presente caído do céu. Finalmente poderiam descansar, sabendo que os seus filhos estariam à distância de um telefonema: mais seguro e mais controlável. Os filhos sentiram-se muito crescidos e aceitaram os telemóveis com agrado, ignorando que a sua liberdade acabava naquele momento. Não demorou muito até que os telemóveis passassem de um simples telefone a uma espécie de agente do KGB, de quem só damos pela presença quando nos vem buscar para interrogatório.
Somos todos controlados por toda a gente, a toda a hora. Gente que conhecemos e que não conhecemos, entidades de que nem imaginamos quais os verdadeiros propósitos. E os mais novos, sedentos da aprovação dos pares, partilham demasiado e expõem demasiado. Talvez precisem de olhar de outra perspectiva, para constatarem que a verdadeira liberdade está na escolha de não partilhar.
A somar a todas as condicionantes da tecnologia controladora, eis que o mundo se vê a abraços com uma pandemia e a falta de liberdade materializa-se na impossibilidade física de nos deslocarmos quando queremos e para onde queremos. Os adolescentes e jovens conhecem o que as gerações anteriores não conheceram. Os anos mais importantes de socialização são comprometidos e a dinâmica das relações altera-se. Foi neste grupo em quem mais pensei durante os meses em que a nossa liberdade foi condicionada. Porque na idade deles, eu andava por aí, solta e despreocupada, com a minha consciência como forma máxima de controlo, a descobrir o mundo, a fazer amigos olhos nos olhos, a enfrentar os medos cara a cara, a encontrar nos beijos e nos abraços a essência da vida. O presente e o futuro eram bons lugares bons, onde tudo era possível. E isto sim, era liberdade.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico