A medalha

Era gordo e pequenino. Nunca mais crescia. Tinham-lhe dito que o passaram pela asa da enfusa, quando nasceu e assim não se desenvolvia. Ele acreditava. As crianças são capazes de aceitar o mais estranho e não acreditar no verdadeiro. Era o caso dele que pensava que ia ficar sempre assim.

O pescoço parecia não ter existido e a cabeça ligava ao corpo, redondo, que lhe dava sempre muito que fazer. Era uma autêntica bolinha, uma almôndega que rebolava por todo o lado. E não havia meio de crescer.

Brincavam com ele, contavam-lhe piadas, mas ele não via o lado engraçado, o cómico da situação. Levava tudo muito a sério como se estivessem sempre a gozar com ele. Era mania, porque ninguém agia assim, nem mesmo para o provocar. Começava a ficar traumatizado e sem motivo para isso.

O irmão estava sempre a picá-lo. Chamava-lhe anão, baixote, anormal. Ele só aguentava, porque era o irmão dele, mas as lágrimas estavam sempre no canto do olho à espera duma oportunidade para saltarem. Era um choramingas e sentia-se envergonhado de cada vez que isso acontecia. À noite, no quarto, chorava sozinho as lágrimas todas que não podia chorar durante o dia. O irmão ouvia e ainda o atiçava mais. Lágrimas de porco.

O quarto das meninas era território proibido. Não podia entrar lá dentro a menos que fosse convidado e elas não estavam para aí viradas. Mas vinha lá de dentro um cheiro agradável e apetitoso. O quarto delas tinha muita luz e era colorido, cheio de bonecos e de fitas. O deles era escuro e cheirava a rapazes. Que diferença.

Um dia a irmã mais velha olhou bem para ele. Andava já há uns dias com pena do miúdo, mas não se queria meter na conversa dos rapazes. Dava sempre mau resultado. Naquele dia pegou-lhe na mão e levou-o para a sala. “Temos que ter uma conversa muito séria, meu menino. Já não aguento ouvir-te a chorar pelos cantos e a ficar sozinho na escola. Tens de reagir, de espevitar. És parvo se acreditas em tudo o que te dizem. Arrebita!” E ele olhava para a irmã, com olhos bem abertos e uma admiração enorme.

Não tinha percebido muito bem o que ela lhe dizia, mas percebeu que era importante para ela e isso já era suficiente. Estava tão contente que se esqueceu de ser choramingas e melodramático. Até se esqueceu, por momentos, de que era gordo e que todos gozavam com ele. Sorriu para a irmã mostrando uns dentes certinhos e ainda muito pequeninos. O que era aquilo de arrebitar? A mana explicou-lhe que ele tinha que ser responsável, tinha que se mexer, fazer exercício e não ligar ao que lhe diziam. Ou então respondia e aceitava as consequências.

Foi para o quarto matutar no assunto. Ele gostava tanto de comer e se deixasse de comer tinha um grande desgosto. Não sabia o que fazer. Estava dividido entre a gula e a solução para o seu problema. Ao almoço olhou para o prato e não se atreveu a comer. A mãe, assustada, colocou-lhe a mão na testa. Não tinha febre. Estaria doente? Ele a recusar comida. “Que tens filho?” “Nada mamã”. “Não comes?” E ele baixava a cabeça, cheio de vontade de comer e de vontade de não engordar.

A irmã percebeu logo o que se passava. Disse-lhe que tinha que comer, mas menos e depois fazer passeios. O rosto dele iluminou-se. Podia comer, ainda bem! Comeu com a boca cheia de satisfação. A irmã depois ia sair com ele. Que bom. Ela sempre soube que ele existia. Era uma rapariga alta e bonita. Chamava a atenção dos rapazes e alguns até assobiavam. Para quê? Parvos. Estava cheio de orgulho e saíram os dois, de mãos dadas.

Aquele dia ficou gravado como se fosse uma máxima ou um quadro. Foi o dia que o mudou para sempre, que alterou a sua conduta de vida. A atenção e o ensinamento. Era o mais novo de quatro, o menino a quem estava a preparar para assim se manter, para ser o menino da sua mãe. Deixava de ter identidade e seria sempre o menino. Ainda bem que a irmã o viu, com olhos de ver e o agarrou na altura certa. Foi a sua tábua de salvação. Como ele lhe estava grato.

Agora, passados todos estes anos, ele recordava aquele dia como se tivesse renascido, como se tivesse sido o primeiro de todos. Houve algo que se ligou dentro de si, que o orientou, que lhe segredava ao ouvido vezes sem conta que ele ia conseguir.

Quando ganhou a sua primeira medalha, no atletismo, foi à irmã que agradeceu e foi a ideia dela que o levou a conseguir uma boa classificação. Ela não tinha desistido dele e tornou-se a sua treinadora. Obrigava-o a não parar, a insistir, a tentar sempre mais longe, esticar os seus limites, tentar o impossível.

Era bonito ver os dois juntos. Ele pequenino e redondinho e ela alta e magra, atenciosa, mas rígida e disciplinadora. Não parava enquanto não entendia que estava no mínimo do dia. Queria sempre mais até que um dia conseguiu que ele chegasse ao fim do treino bem-disposto motivado. Estava conseguida a continuidade da coisa.

Nem era preciso dizer-lhe o que tenha que fazer. Assim que ela chegava a casa, ele ia vestir os calções e calçar os ténis e iam correr. Aos poucos foi perdendo toda a gordura inútil e ia ficando um rapazinho como os outros. O hábito criado pela irmã era salutar e já não lhe custava nada. Aliás, ansiava pelo momento.

Na escola queria participar de todos os desportos. Tinha muita resistência e raramente se cansava. E continuava a crescer, como um rapaz da sua idade. A irmã estava a acabar o curso e tinha menos tempo para ele. Custou-lhe, mas entendeu. Treinava sozinho. Não queria deixar ficar mal a irmã. O que ele ainda não tinha entendido é que se estava a ajudar.

A irmã, um dia saiu de casa. Casou e foi para a casa dela. Ele sentiu-se traído. Não pelo marido da irmã, mas porque sentiu que uma parte de si tinha acabado. A sua infância tinha sido tão doce depois dela lhe ter ensinado o caminho. Já era um adolescente, tinha que seguir o seu caminho e não olhar para trás.

Continuou o seu treino, agora quase sempre sozinho. Ele sabia que não queria largar todas as conquistas que já tinha conseguido. O irmão já não o incomodava, não lhe dizia nada. Estava na sua vida e já não lhe interessava um miúdo que ele sabia que era mais forte e determinado do que ele.

A vida continuava e ele foi apurado para os Jogos Olímpicos. Treinou tanto que conseguiu ver o seu valor reconhecido. Estava onde queria. E, quando ouviu o Hino Nacional, depois de receber a medalha de ouro, as suas lágrimas não eram para o país que representava, mas sim para a irmã que, desde cedo, lhe tinha dado a mão e o tinha feito chegar ali.

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