O gosto e a prática de coleccionar objectos, porque raros, exóticos, belos, diferentes, únicos, valiosos, deu lugar à institucionalização de espaços destinados a mostrar aquilo que estava reservado só para alguns. Nascem assim os museus como espaços públicos e sistemas organizados, usando métodos e técnicas adequadas para classificar e conservar as peças bem como para as exibir.
Do inicial espaço erudito, aberto só a alguns, aos iluminados e escolhidos, passou-se a locais onde todos, jovens, crianças, turistas, estudantes e estudiosos, poderiam usufruir dos ensinamentos. Os objectos não são apenas mostrados, mas também explicados e interpretados, não vivem só por si, mas também pelo contexto de onde provêm, pela função que possam ter desempenhado. Evocam situações, temas, problemas, relacionam o passado com o presente, os locais, os modos de pensar, de sentir, de viver, de existir. Do silêncio sepulcral passou-se ao som ambiental, à música de fundo, à variação de luz, à rotação da peça, ao espectáculo, à comunicação e, sobretudo, à sedução. Assistiu-se ao renascer, ao alargar do gosto pela preservação de tudo que esteja em risco de poder perder-se para sempre. É o património material e cultural que está em risco. Para obviar riscos e inconvenientes é necessário um longo trabalho de sensibilização, de qualificação, de formação especializada de todos aqueles que terão responsabilidades em matéria museológica. O público também deve ser alvo de um esforço pedagógico de modo a motivar interesses, esclarecer opiniões e acordar as vigilâncias necessárias para a cultura e o conhecimento.
Recordo João Baptista Ribeiro, aquando do seu discurso, na inauguração do Museu Portuense: ” … os museus sãos lugares próprios ao repouso e reflexão: ali podem os honestos cidadãos saborear os agrados e os encantos que as boas artes são capazes de lhe dar, quer lhes ensinem coisas novas ou lhes recordem coisas antigas, quer finalmente lhes excitem a atenção pela beleza e singularidade de objectos que lhes oferecem…”.
O Museu dos Coches Reais foi o derradeiro museu da monarquia lusitana, aberto em 1905. Foi graças à iniciativa da rainha D. Amélia de Orléans e Bragança, que o instalou no antigo Picadeiro Real do Paço de Belém, após obras de reconstrução e ornamentação para mostrar os “magníficos restos d’uma grandeza toda realenga”. Foi inaugurado a 23 de Maio, possuindo um acervo vasto: berlindas, carruagens, seges, liteiras e coches, a maior colecção de carruagens artísticas dos séculos XVIII e XIX. Tem igualmente uma importante colecção de arreios, selas, instrumentos musicais da Charamela Real e fardamentos de cocheiros, sotas, moços de cavalaria e outros. Na notícia de abertura salienta-se: ” …tantas recordações da história que evocam sob os seus tectos tecidos em sedas lindas, sobre os seus assentos de veludo (…) d’aqueles que assim em toda a pompa d’uma oriental magnificência se mostraram às turbas ajoelhadas (…)”.
Curiosamente o decreto número 1 de 1911, já durante o período republicano, no dia 26 de Maio, salienta: ” … os museus como complemento fundamental do ensino artístico e elemento essencial da educação geral…”. Em 1965, o decreto 46758, de Dezembro, institui o Regulamento dos Museus, enumerando os museus oficiais, inovando quando afirma: ” … como centros activos de divulgação cultural (…)… necessários para atrair visitantes e exercer uma acção pedagógica (…) … contactos estreitos e constantes com as escolas… “.
Os museus são organismos destinados não apenas a conservar correctamente os objectos, mas também a estudá-los e apresentá-los no contexto espaço-temporal da sua criação e utilização, transformando-os em elementos de informação preciosos para a compreensão da actividade humana e a sua evolução. É um circuito de memórias, de preservação, de conhecimento do passado. A exposição é o meio do museu, o seu instrumento, a sua comunicação. Pretende-se apresentar, divulgar, promover, desenvolver e manter os museus e a informação actualizados. É a sua missão cultural e educativa.
No dia 21 de Maio foi a noite dos museus e aproveitei para visitar o novo Museu dos Coches. O que vi foi escabroso e assustador, um autêntico atentado à cultura e à memória da rainha D. Amélia que, com a sua boa vontade e espírito científico e cultural, se propôs deixar um legado inesquecível. Já não bastava a pobre senhora nunca ter gostado de viver em Portugal, ainda é maltratada na sua memória, no fruto do seu trabalho e iniciativa. É vergonhoso.
O local não tem carisma, não se vive um ambiente de cultura, é frio, desprovido de decoração adequada, assemelha-se a um depósito de peças, não há método de posicionamento, há falta de informação, ausência de sinalética, o tecto é horrível, a iluminação é deficiente e não há livro onde de possa deixar opinião. Nada parecido com o local original onde se respira e vive as histórias da História.
Enviei um e-mail para a directora da instituição manifestando o meu desagrado. Prontamente me informaram que todos os pontos que assinalei estão contemplados na museologia do recinto. Acontece que existe uma grande diferença entre ser e estar. Não consigo entender como foi possível a abertura daquele espaço enquanto museu. Tem todas as condições para funcionar em pleno, mas é preciso que haja vontade, interesse e conhecimento para que aconteça, que se faça.
A título de curiosidade, junto da carruagem do correio, nº 7 podia, eventualmente, constar a seguinte informação: “(…) as origens dos CTT remontam a 1520, quando D. Manuel I criou a serviço de Correio Público de Portugal e o cargo de Correio-Mor do Reino, extinto em 1798, por D. Maria I (…)” É só uma sugestão. Não está nada assinalado. Não me compete fazer esse trabalho, existe uma equipa especializada que gere, do ponto de vista cultural, o nosso erário e que me parece não estar a desempenhar devidamente o seu papel. É um vazio total, uma falta de noção não só de estética como também de profissionalismo. É assim que querem promover o país e o museu? Não me parece que esteja a resultar. Eu estou desagradada e muito!