Não foi menino. Não houve tempo. Teve pressa ou talvez tenha sido a vida a ter pressa por ele. Oficialmente foram as chuvas, as tão aguardadas chuvas eternamente adiadas. Era seca e árida a ilha que o viu nascer e quando se deu conta era um jovem de 17 anos num barco rumo a Portugal. Endureceu a fachada para ocultar a imensa fragilidade da fundação, fez-se homem fora de tempo e atrapalhou-se como acontece a todos os homens que nunca chegaram a ser verdadeiramente meninos. E entre acertos e desacertos partiu, uma vez mais fora do compasso.
Renasce nas fotografias com ar de quem sabe tudo e sabe. Agora sabe. Chegou primeiro a esse lugar sem nome e sem retorno. Percorro-lhe o rosto com os dedos da lembrança e juro que lhe sinto a pele. Às vezes deitava-se no meu colo e pedia festas na cabeça, numa sede de carícia materna. Nessa altura eu ainda não sabia o tamanho da ferida que a infância lhe tinha deixado. Pedia festas na cabeça e eu dava atrapalhada, que só por dentro sei exercer ternuras. Em mim a eterna suspeita de que inquietações idênticas nos habitavam. Olhando para trás concluo que muito da nossa relação foram suspeitas, sombras, portas entreabertas.
Era enorme o meu pai e ocupava a casa inteira. Alto, voz grossa, gestos lentos e mãos nos bolsos onde suspeitei sempre que escondia a ternura, protegendo-a com os punhos para que não transbordasse. Assobiava se estava alegre e havia melodia no seu assobio. Tinha um ‘não sei quê’ de pássaro sempre a caminho de novo voo. Inquieto e indolente, conservador e progressista, linear e contraditório, único carrasco do homem livre que sempre o habitou. Enchia uma casa com a mesma intensidade com que a esvaziava e o seu grito tinha o exacto volume do seu silêncio.
Viveu com pressa, secretamente assombrado com a voracidade do tempo. Surpreendi-o algumas vezes a medir as rugas ao espelho, acariciando-as lentamente e de olhos muito abertos. Vaidoso, custava-lhe aquela despedida impiedosa do cabelo, que se fazia ralo. Um dia, com uma naturalidade perturbadora, disse-me que não deveria viver mais de 60 anos. Passei as noites seguintes a contar os anos. O dom da imprevisibilidade afastava-o das pessoas comuns. Tinha sede de viver e tinha sobretudo sede de amor. Sei que era principalmente isso que buscava, desajeitado como um touro às cabeçadas.
Experimentou a liberdade e a falta dela, a euforia e a dor profunda, e foi sempre de olhos secos que o vi passar pelas mais duras provações. Um dia a vida tirou-lhe o tapete e por baixo dele nada. Um golpe inesperado mudou para sempre o curso da sua existência e foi aí a primeira vez que vi chover dos seus olhos. Só então descobri que chorava como as crianças, o som continuado, o desamparo dos ombros descaídos, a cabeça baixa, o peito húmido de sal, tudo a gritar infância.
Depois disso adoeceu, julgo que da alma mais do que do corpo. Na cama de hospital onde agonizou por semanas nem uma lágrima. Forjou uma normalidade que não existia e nós acompanhámo-lo. Até ao fim. Depois o telefonema, a ida às pressas para o Hospital, a cama vazia, a frieza de quem numera e carimba. Depois a agência, os preços, a caixa de madeira. Depois o rosto disforme de algodão nas narinas e a certeza de que a alma se tinha decolado dos ossos.
Eramos poucos naquela tarde de frio e de chuva. Nós, evidentemente, e alguns rostos difusos a quem roubaste a normalidade de uma tarde. Lembro-me de alguém de dedo em riste e aflito para que o mestre-de-cerimónias não se esquecesse do papel que justificaria a sua ausência do trabalho. E não sobrou muito mais daquela tarde. Lembro-me de ter virado costas sem culpa, porque soube desde o primeiro momento que não estavas ali.
No outro dia fiz um esforço enorme para te lembrar a voz e ela não veio. Há partes de ti que me vão fugindo, mas nos meus sonhos estás sempre inteiro e é tudo tão natural. Nos meus sonhos não há dores nem sofrimento. Nos meus sonhos abraçamo-nos e somos exímios nos exercícios de ternura. Depois do abraço contas-me de ti, de como a avó Catarina te recebeu nos seus braços e de como tens matado a sede de infância no seu colo. Quando acordo, juro que escuto o eco do teu assobio.
Este texto é de tirar o fôlego! Obrigada Telma Santos.