A luz causava-lhe estrelinhas nos olhos cada vez que olhava para os seus sapatos de verniz. Eram vermelhos e pareciam especialmente brilhantes naquele dia. Ela não parava de olhar para eles e de encaracolar o cabelo no dedo indicador direito. A outra mão apertava com força os dedos da avó.
Olhou um pouco para cima, para um senhor que passava mesmo à frente dela. Tinha uns óculos fundos como quem não vê bem, e uma barriga de Pai Natal. Não gostou dele. Olhou de novo para os sapatos. Depois, para a avó.
“Então?” perguntou autoritária, do alto dos seus quase cinco anos.
“Tem calma, devem estar a chegar” respondeu-lhe a avó naquela voz esganiçada de falta de paciência. Não é que lhe faltasse a paciência, a avó é que tinha aquela voz.
Olhou à volta, de novo. Preferia olhar para os sapatos, porque tantas pessoas no mesmo sítio deixavam-na inquieta, sentia-se com tonturas. Pessoas a correr, quase que a pisavam. Pessoas a andar rápido, com malas ou sem malas; com carrinhos, com bilhetes, com ar cansado. Bebés a chorar. Teve vontade de tapar os ouvidos. Sentiu uma comichão no céu da boca e espirrou, e ao olhar para os sapatos viu um pingo de água do nariz no sapato esquerdo. Uma gota intrometida no sapato novo e brilhante.
A avó seguiu-lhe o olhar. Largou-a da mão e procurou um lenço na mala. Deu-lho, sem dizer uma palavra.
“Tens que estar bonita!” disse-lhe, enquanto ela se baixava.
Limpou os sapatos com muita ânsia e com força, tinha medo que eles não chegassem por ela estar feia. Que a abandonassem ali, naquele lugar onde só havia a ausência deles e a confusão dos outros. Ela sabia que eles não a tinham deixado, eles tinham-lhe explicado que estavam a trabalhar, mas ela não conseguia evitar ter medo. Pensou em molhar o dedo com saliva para limpar melhor o sapato, como a avó fazia quando ela tinha doce na bochecha. Lembrou-se que depois sentia-se sempre peganhenta, não gostava nada e ia a correr lavar a cara. Por isso, desistiu da ideia.
Deu o lenço à avó, que o pôs no bolso distraidamente. Os sapatos estavam limpos, mas notava-se que o esquerdo tinha perdido um pouco de brilho. Sentiu um desconforto. Os sapatos apertavam-lhe, e desejou que aquela espera passasse rápido.
De repente, sentiu-se agarrada e elevada. Esprimida, comprimida, abraçada. Não conseguia respirar, mas era bom. Deu alguns pontapés, leves, para conseguir ver a cara dele, mas já o tinha reconhecido pelo cheiro e pelo toque.
Pai.
“Então, ela portou-se bem?” perguntou ele à avó, abraçando-a. Sentiu-se entalada entre o pai e a avó.
“Foi uma linda menina” a avó piscou o olho, como se partilhassem um segredo. “E a vossa viagem?”
Ela abraçou-se ao pescoço do pai enquanto ele falava com a avó. Não o queria soltar, não queria que ele pudesse desaparecer outra vez.
A mãe veio alguns minutos depois, e ela viu-a logo. Abanou-se um pouco, para o pai a pôr no chão. A mãe vinha a chorar e a correr de braços abertos, com um enorme sorriso na cara. Atiraram-se uma à outra, com ansiedade, com saudades, aflitas.
“Meu amor!” a mãe beijou-lhe o cabelo e a orelha e o pescoço. Repetidamente e muitas vezes, quase que lhe fazia cócegas. Gostava daqueles beijinhos, e teve vontade de chorar de saudades. A mãe olhou-lhe para os pés. “Mas que lindos sapatos!” Sorriu e voltou a beijá-la, e ela riu do elogio.
A mãe abraçou a avó, e depois abraçou-se ao pai. A avó voltou a dar-lhe a mão, num acto reflexo, como se dependesse disso para respirar. Ela não tirava os olhos dos pais, e de vez em quando olhava para os sapatos que lhe magoavam os dedos. Não queria que os pais se fossem embora outra vez, queria que fizessem outro trabalho qualquer, em que ela também pudesse estar, como a avó e a horta. Lembrou-se do dia em que lhes perguntou a profissão.
“Trabalhamos nos médicos sem fronteiras”, tinham dito, sem explicar o que era um médico sem fronteiras.
“Médicos? São doutores?” tinha querido saber ela.
“Enfermeiros”, tinha respondido a mãe com um brilho nos olhos.
Olhava para os pais, que ainda estavam abraçados e pareciam falar em segredo um com o outro. Franziu o sobrolho. Lembrava-se claramente que a mãe tinha dito que eram enfermeiros. Mas agora sentia-se confusa. A avó não lhes chamava isso. A avó tinha-lhe explicado que a profissão dos pais era “heróis”.