“Prefiro morrer de pé do que viver ajoelhado”. A frase foi dita há dois anos pelo diretor do Charlie Hebdo, Stéphane Charbonnier (mais conhecido como Charb), durante uma entrevista ao Le Monde. E é isto que quem faz do jornalismo a sua vida deve ter em mente, em todas as horas de cada dia.
No dia 7 de Janeiro, morreram doze pessoas num atentado. Tentou-se, então, matar várias liberdades: a de imprensa, a de informação, mas acima de tudo a de expressão. Lançar o medo é algo muito eficaz, especialmente quando ficamos a saber que pode andar alguém por perto com uma kalashnikov nas mãos, pronto para, ao som das balas, calar-nos para todo o sempre.
Não quero entrar pelo lado religioso do acontecimento. A verdade é que os atacantes eram extremistas islâmicos. Um deles afirmou estar às ordens do famigerado Estado Islâmico e outro tinha tido treino especializado dado pela al-Qaeda, em campos de preparação no Iémen.
Matar com o objectivo de vingar alguém que conhecemos é mau. Matar (e morrer) com o objectivo de vingar alguém que nunca conhecemos e cuja existência, pelo menos no meu ponto de vista, ainda é uma incógnita, é absolutamente bizarro. Devido ao facto de isto ter sido feito sob a bandeira de uma convicção religiosa, não sei se se considerará esse comportamento como um distúrbio mental. Porém, como pertenço a um grupo de pessoas que não fazem do banco da igreja, ou do tapete da mesquita, ou da sala de estudos da sinagoga o seu lugar de reencontro com, o que eu chamo, um amigo imaginário, creio que isto se trata, acima de tudo, de um distúrbio mental profundo, inserido na cabeça de milhares de muçulmanos (dos fundamentalistas) por ideias que prevalecem, algumas delas, desde que o Corão foi redigido.
A reação do povo francês não se fez esperar. Como sempre, os franceses não se deixam amedrontar por aqueles que do difundir do medo fazem uma missão. Fizeram isso com os nazis, aquando da invasão de Paris. Fazem-no agora contra as novas formas que o lápis azul ganhou com o passar dos anos. Pela liberdade de expressão, pela laicidade, somos todos Charlie.
Vingar o profeta pode custar caro a quem o segue. A Frente Nacional, partido político dedicado, quase em exclusivo, ao discurso contrário ao multiculturalismo (discurso especialmente islamofóbico), está a começar a ser ouvido mais a sério por aqueles que, até há bem pouco tempo, desvalorizavam os alertas lançados frequentemente por Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional.
Falam-nos em respeito. Há uns dias, Miguel Esteves Cardoso, quase como que adivinhando o que iria acontecer, questionava “Quem [seria] o primeiro idiota entre nós a dizer que a culpa foi dos assassinados?”. Ao que acrescentou: “ser-se estúpido também é um direito”. Como se viu nas redes sociais, alguns fizeram uso das mesmas para fazer ouvir a sua opinião. Afinal, a estupidez é uma das consequências da liberdade de expressão.
Façamos agora um exercício hipotético. E se o Charlie Hebdo fosse português? Por cá, muita gente diz ‘ser Charlie’. Contudo, passar-se-ia o mesmo se o Charlie Hebdo (numa hipotética versão portuguesa) ridicularizasse sistematicamente a hipocrisia dos conservadores e dos católicos, dos poderosos que controlam os negócios e a política, dos snobs (neste país, disso não falta), ou dos que simplesmente se põem a jeito para a troça pública? Somos o país do respeitinho. O grande exemplo disso foi a censura de um sketch humorístico de Herman José nos anos 80 (quando já se respirava democracia há uns bons anos) que gozava, forte e feio, com alguém que nem era português: gozava com a rainha de Inglaterra.
A verdade é que o arrojo, por vezes, pode sair caro. No entanto, desde quando fazer meia dúzia de rabiscos num papel é motivo para se carimbar um passaporte para uma viagem que acaba debaixo da terra?