Exemplo mais óbvio do melodrama, O Pecado das Mães continua a ser importante para a compreensão básica de um género desaparecido em Hollywood.
Numa altura em que a Mulher-Maravilha é o tópico de maior discussão nas conversas de café e nas redes sociais entre espetadores (mais ou menos) cinéfilos, decidimos procurar filmes que convocassem o mesmo female power (com todas as reservas que esta afirmação convoca…) e que tivessem sido igualmente revolucionários tanto para a indústria de cinema, quer em determinados quadros sociais e culturais.
Foi então que nos deparámos com O Pecado das Mães ou Stella Dallas, no título original, realizado por King Vidor. Este até pode não ser um filme de ação sobre uma mulher com um determinado super-poder, mas é sobre o poder de uma mulher, e só isso seja suficiente.
Stella Dallas teve direito a uma versão muda em 1925, e um ano antes, a uma peça de teatro produzida pela Selwyn and Company, contudo foi a versão de King Vidor (cuja compra dos direitos de autor situou-se no valor de 15 mil dólares) a escolhida para análise, porque entre todas as adaptações do livro do mesmo nome, da autoria da poetisa Olive Higgins Prouty (1882 – 1974), e publicado em 1923, esta é por muitos tida (e pela sua própria autora) como a mais fiel ao romance. O êxito e popularidade deste filme nas camadas mais baixas da sociedade, e sobretudo entre mulheres, contribuiu ainda para a adaptação a uma radionovela/ soap-opera (das mais longas da história americana) que se estendeu entre 1937 e 1955. Também em 1990, Bette Midler protagonizou um outro remake Stella, de John Erman, o que traduz a necessidade de adaptar esta história intemporal a várias gerações.
O Pecado das Mães trata-se também de uma obra que celebra um género (ou subgénero, como queiram entender) tão debatido por críticos, espetadores e teóricos em todo o mundo: o melodrama. Mas antes mesmo de convocar as particularidades desse género, “pai dos géneros” em Hollywood, importa considerar alguns momentos marcantes do filme.
Entre todos eles, não há como esquecer a última cena. Já desde a sua estreia, em 1937, que os vários públicos, que foram sendo tocados por este enredo, não têm falado de outra coisa. Esqueçam o habitual beijo apaixonante entre o casal mais tolo do mundo, O Pecado das Mães termina com uma mulher sozinha, de forma tão catártica e emocionante. Isto porque, essa mesma mulher parece concretizar o seu sonho de juventude: a ascensão social e a pertença a uma classe dita superior. É verdade que não deveríamos estar a revelar o final deste maravilhoso clássico, mas para a sua análise achámos necessário começar exatamente por aí.
De facto, a cena final de O Pecado das Mães continua a ser ponderada por críticos e feministas em todo o mundo, como um espelho das atitudes de Hollywood (clássica e não só) em relação às mulheres. A imagem é a de Stella (a tão versátil Barbara Stanwyck que acabou nomeada ao Óscar de Melhor Atriz) que assiste, à chuva, ao casamento da sua filha, através de uma enorme janela fechada. Stella, com rosto iluminado, mesmo que junto às vedações de ferro que a separam da casa, está completamente imersa na cerimónia matrimonial da filha Laurel (Anne Shirley, nomeada ao Óscar de Melhor Atriz Secundária), sem que esta saiba que a sua mãe a observa. Assim acontece porque Stella rompeu com qualquer comunicação com a filha, a fim desta poder finalmente “entrar” na classe burguesa. Stella, voyeurista, assiste até ao beijo do casal. Por fim, ela afasta-se, em lágrimas, satisfeita por ter garantido à sua filha uma vida melhor, uma que ela sempre sonhara.
Na época, a crítica mais radical (sempre tão mordaz) tomava o filme como um lamentável exemplo da tarefa das mães, de cuidar das suas filhas e prepará-las para o casamento, projetando os seus sonhos passados (e não realizados) nelas. Depois, as mães voltariam a ser objetos passivos nos seus respetivos lares, dominadas, entretanto, pelos seus maridos. Os críticos também consideravam a cena um exemplo das finitas relações entre mães e filhas e um reflexo do oportunismo dos mais pobres. No entanto, e porque a leitura de um filme é sempre um conjugar de pontos de vista ambíguos e pessoais, o sacrifício de Stella não deverá ser, de modo algum, menosprezado.
Stella não parece ser uma mulher como as outras, pelo menos como a maioria daquelas da sua época (a trama começa na América de 1919, como nos é revelado no início). Ela cumpre o derradeiro sacrifício porque sabe que a sua filha, mais do que ela, conseguirá filtrar e moldar certo tipo de padrões (numa sociedade principalmente assente na família nuclear e que mesmo se dizendo justa e democrática continua sendo imponente e autocrática). Stella não conseguiu tal propósito, porque nunca conseguiu ser a esposa obediente e, assim, não viveu o ideal “felizes para sempre” com o milionário Stephen Dallas (John Boles). É isso que a torna uma figura ativa.
O filme (é quase todo) construído consoante os passos dados por esta mulher. Digamos, aliás, que Stella conserva atributos de uma mulher à frente do seu tempo, sendo muito mais do que uma mãe. Esse papel não é de todo desconsiderado como sabemos, mas Stella é primeiro uma mulher autêntica, e a sua estória reflete a luta de mulheres heróicas, fortes e, claro, desconhecidas.
É por isso que antes de ser um conto da relação entre uma mãe e a sua filha, O Pecado das Mães é sobre uma mulher que tenta encontrar o seu lugar no mundo. É tanto sobre o papel que ocupa no lar, sobretudo depois do seu casamento com Stephen, cena que, com recurso à elipse, não é mostrada, como no espaço social. Stella é uma mulher que vê além do espaço do lar, isto porque, no início do filme está no quintal da sua casa, como se aguardando a oportunidade de uma vida.
Stella sonha com uma vida de requinte, mas quando o casamento acontece percebe que não era exatamente aquilo que queria. Stella prefere festas e danças, a magia de viver luxuosamente, mas longe de convencionalismos. Stella quer divertir-se, mas Stephen força-a a assumir um papel que ela jamais se enquadra. Como se para esquecer a pressão matrimonial, Stella começa então a vestir as roupas mais exageradas, umas atrás de outras, situadas entre o espalhafatoso e ridículo. E Stephen vai-se afastando, ficando ambos cada vez mais distantes um do outro. A dissolução do casamento da protagonista começa pela profundidade de campo que enfatiza visualmente o isolamento na casa. E esta profundidade só pertence a Stella.
A necessidade dos estúdios fazerem um remake de um filme mudo (Sam Goldwyn acabou por pegar noutros filmes por ele produzidos, recriando-os com versões sonoras), decorreu muito provavelmente da tentativa de acompanhar as lutas substanciais para as mulheres da época (a própria primeira-dama Eleanor Roosevelt era extrema defensora dos direitos humanos e recebia muitas cartas de mulheres que lhe apelidaram de “Mãe Roosevelt”).
Na verdade, nesse mesmo período, a multiplicação do número de casais divorciados e a expansão da família sob padrões monoparentais mudaram a vida americana. O filme permitiu acentuar a conversa sobre essas questões, e em torno dos direitos das mulheres, que o próprio New Deal intensificou direta e indiretamente. Uma das cenas que parece ilustrar essa “união” feminina, em torno de reivindicações, é a conversa entre Stella e Helen (Barbara O’Neil como a primeira amante e depois futura esposa de Stephen). Stella e Helen, nas suas diferenças de classe (proletariado e burguesia), estão unidas como mulheres, como figuras maternas que lutam por um determinado papel e que refletem bem os laços fortes entre mulheres e os seus dramas no século XX.
De ter em conta que King Vidor esteve pouco interessado na moral do filme ou na mensagem. O realizador procurou especialmente intensificar o efeito que o filme teria sobre as audiências, no plano das emoções. É por isso, e por tudo aquilo referido, que o filme é visto como arquétipo e expoente do melodrama – dentro ainda da fórmula dos “women’s pictures” ou apenas “weepie” (filme lamechas e sentimental) -, que floresceram entre 1930 e 1940 e que se prolongaram, aproximadamente, até aos finais dos anos 50.
O melodrama, do francês mélodrame – que conjuga as expressões mélo (música) e drama (que advém do teatro grego) -, era, a par do musical, o grande género americano da Era Dourada. Mesmo com uma hipérbole dos espaços, expressividade e gestualidade dos atores e movimentos de câmara exuberantes e repetitivos, os melodramas apelavam ao quotidiano do espectador, que, deste modo, se identificava com a trama, reflectindo, talvez, sobre a possibilidade de superação de certas adversidades na sua própria vida. Trata-se, pois, de um género, agora incorporado noutros como modalidade, que sempre se quis revolucionário (surgiu com o teatro de pantomima francês e a literatura realista dos finais do século XVIII e inícios do século XIX, com uma espécie de compromisso para com os ideais da Revolução Francesa) e que em Stella Dallas se cumpre, através do seu lado mais realista.
Ficha técnica
Ano de Produção: 1937/ Título português: O Pecado das Mães/ Título original: Stella Dallas/ Realizador: King Vidor / Argumento: Sarah Y. Mason e Victor Heerman (baseado no romance de Olive Higgins Prouty/ Elenco: Barbara Stanwyck, John Boles, Anne Shirley, Barbara O’Neil, Alan Hale e Marjorie Main/ Música: Alfred Newman/ Duração: 105 minutos
Comentário ao filme O Pecado das Mães por Robert Osborne e Drew Barrymore no programa The Essentials
Parte 1
Parte 2