A vida vai torta

Recém acordado num dia igual a todos os outros. Calor aterrador a oferecer abraços de fogo. Uma chávena de café com leite na mão a alimentar a lutar contra uma sonolência que teimava em ficar. E o jardim. O jardim maltratado, a relva errante, as ervas enervantes, a pouca vontade de ter mais um dia. Bem que dizia o Tim e os seus amigos: quando a vida vai torta jamais se endireita. Olhou para o estado do jardim e viu a sua vida. Até adivinhou onde estava o outro, ali debaixo daquele carrinho enferrujado virado e tombado. Ali na penumbra,escondido à espreita, o azar que teimava em persegui-lo.

Mas o que podia fazer? Talvez desistir? Atirar a toalha ao chão? Eram constantes interrogações ávidas de respostas. Mas para quê? Para sujá-la naquela relva imunda? Eis quando se percebe que se se preocupar em sujar quando se quer desistir… hmmm, se calhar não quer…

O melhor que pensou, o que de repente soube ser de bom tino, era tratar daquele jardim. Bom, daquele quintal que se pretendia que se promovesse a jardim. Ele bem o via como o único jardim que ainda tinha na porra da vida, por isso tão mal cuidado estava. Luvas grossas, tesoura de podar, ancinho, etc, parafernália e suor. Promessa era a dor de costas que já sabia que aí vinha. E bem a sentiu debruçado sobre o verde, submisso. Lá foi ele caprichando as forças, cortando primeiro e aparando depois, cosmética visual que intensificaram cheiros que havia esquecido. Os aromas do fresco, do natural, da vida.

Cortou e aparou. Aqui e ali. Limpou e varreu e lá foi surgindo o porquê de tanto esforço. O ânimo surgiu de soslaio e sossegou-o sem que ele se apercebesse disso. Ânimo que usou para levantar o carrinho capotado, que infortúnio haveria ele de ter tido? Devagar para não assustar o azar que se escondia à espreita, levantou-o apenas um pouco. Nada fugiu assustado. Ergueu-o mais um pouco e luz queimou o escuro. Ainda nada. Virou-o e afinal nada tinha a temer senão a dúvida sobre o que fazer com o carrinho de mão mais abandonado que podia ser encontrado num qualquer jardim. E de repente do nada veio tudo. Bom, quase tudo… Ou apenas alguma coisa.

Certo é que desse nada revigorou todo o ânimo que jazia escondido no seu ser. Tratou do resto do jardim que uma vontade que ainda não tinha tido. Chegou a cantarolar, a assobiar para os pássaros logo fugiram. Pegou então na sua ideia. Pegou então no carrinho. Limpou-o como pode e preparou-o. Sabia que estava a dar um passo correto e que finalmente algo estava a bater certo.

– Malta, como é? Aparecem? Sim, está tudo pronto e arrumado, nem vão reconhecer o jardim. Apareçam sem falta. A matança da sede está prometida!

E eles lá apareceram. A malta a descontrair sob o sufoco do calor que se abatia. Juntaram-se no jardim em volta do velho outrora capotado carrinho de mão, agora cheio de gelo e cervejas frescas. Conversaram, riram, beberam, sorriram, cantaram: “E enquanto esperava, no fundo da rua, pensava em ti e em que sorte era a tua, Quero-te taaantooo…”

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