Mariza

O fado escolhe envolver-se em mistérios. Durante uns tempos, quis reter-se escondido por entre especificidades até ressurgir inteiro e cheio de força com nome de património da humanidade. As palavras e os sons em que se traduz são completos, variados, cheio de estilos. Todo ele é, por si só, alma. E é nosso. Só nosso.

De tão caprichoso, singular e único, também escolhe os seus intérpretes. Quem o canta, volta e meia, talvez pense assim. Que há uma mão sinuosa que sem mais nem porquê os escolhe. Desta forma os intérpretes são apanhados numa teia e nada mais têm a fazer a não ser renderem-se a uma força que quase se requer de natureza.

O fado não escolhe quem o canta ao acaso. A maior parte das vezes é sempre gente cheia de força, de garra, simples mas sem perder a forte presença, com gosto pela vida e cheia de mel nas palavras e no olhar. Mariza é assim. Escolhida a dedo sem se aperceber que tinha sido escolhida. Quando se apercebeu já ela era fado também.

Cresceu nas ruas da Mouraria e no restaurante dos pais, onde se cantava e respirava muitas vezes o fado, por entre vozes tão díspares como as de Fernando Maurício e Alfredo Marceneiro Jr. Aí terá cantado pela primeira vez aos sete anos, sem adivinhar talvez que o seu futuro seria esse, até porque neste seu espaço com cheirinho da África, que também é sua, ficou um pouco dela, da menina, da voz e das recordações.

O fado escolhe sempre quem o canta. Porque tem de ser um pouquinho como ele. Tem que se emocionar por entre palavras sem se envergonhar, chorar em palco até, querer partilhar e dar até que a voz doa. Não será essa a grande essência?

Em tantos anos de devoção, mais de uma década de crescimento e experiência, da Mariza que se traduz como antes e depois de ser mãe, que cresceu entre músicas, danças e olhares de admiração por Fred Astaire e Ginger Rogers, a fadista tem se transformado numa das representantes máximas da música que nos representa por entre palcos pelo mundo fora. Ganhou prémios, nomeações, entre os quais para um grammy. Longe vão os tempos onde se apresentou profissionalmente, pela primeira vez, no “Sr. Vinho” ou onde encantou no “Café, Café” de Herman José.

Entre tantos estilos de música que a acompanham (e que também já os cantou em bandas de covers), desde o jazz, rock ou soul, foi o fado que preferiu e a escolheu. Com Deus ao lado e positivismo no outro, doa-se sempre a cada timbre e se a escutamos é porque nos ouvimos um pouquinho a nós e percebemos finalmente e de uma vez por todas que não faz mal, que não dói, afinal, gostarmos e orgulharmo-nos do que é nosso.

À Mariza que é emoção, dança e voz, que é a mãe orgulhosa do Martim e porta-voz sem medos do que é gostar, não lhe resta a prazerosa alternativa de cantar e ser musa de algo tão único e especial. A nós, que permaneçamos volta e meia em silêncio. Porque ela canta o fado.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

A Importância de Desacelerar

Next Post

Portugal na CEE – as dicotomias

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

As línguas latinas

România é um nome vivo ainda, nos dias de hoje, e está ligado à comunidade de línguas derivadas do latim.…