Maio, 2022, algures por aí.
Querida tecnologia!
Querida Tecnologia, escrevo-te hoje como quem escreve a uma amiga de longa data, no entanto, minha querida Tecnologia, escrevo com o mesmo sentimento de quem acaba com um namorado antigo e não tem a coragem de o olhar “olhos nos olhos” e, por essa razão, escolhe uma SMS!
A razão pela qual te escrevo? Bem, querida Tecnologia, escrevo porque sinto que te usei! Usei e abusei de ti! Aliás, atrevo-me até a dizer que todos o fazemos e, agora, pagamos esse abuso.
Lembro-me que, num passado assustadoramente pouco distante, tu apareceste de mansinho, imaculada e segura de ti. Chegaste cheia de promessas bonitas, prometias facilitar a nossa vida, encurtar distâncias, diminuir esperas. Prometias solucionar quase todos os nossos problemas e eu? Eu, e tantos outros, acreditámos em ti: apaixonámo-nos à primeira vista! Rapidamente substituíste as cartas de amor envergonhadas por simples, e imediatos SMS, e agora, sem termos de envergar o bilhetinho do sim/não tudo era mais fácil. Quando demos por nós, todos te tínhamos na mão! Tornaste-te vaidosa: trazias as nossas músicas, literalmente no bolso, levando-as suavemente aos nossos ouvidos de forma cada vez mais eficiente. Nós adoramos-te querida Tecnologia, melhor idolatramos-te!
Graças a ti, agora podemos ter todo um escritório no bolso, uma discoteca, o mundo! Devemos-te o Mundo como o conhecemos, querida Tecnologia, e sim, somos te gratos e humildemente te agradecemos.
Confesso, quando comecei a minha relação amorosa contigo não era totalmente livre: sim, existiam outras!
Lembro-me, especialmente do fascínio por uma delas: pelo seu cheiro, pelo seu exterior magnífico e pelo seu interior sedutor. Adorava entrar na livraria, pegar neles, analisar a sua capa, virá-los ao contrário para ler a contracapa, abrir, sentir o cheiro doce do papel e sonhar com as aventuras prometidas. Uns, largava-os friamente na prateleira, outros trazia para casa: devorava-os lascivamente e quando os acabava repetia o ritual. Essa paixão deixei de parte por ti, não totalmente é certo, mas passou para um simples passatempo quando tu entraste e ocupaste paulatinamente o teu lugar. Contigo, mesmo sem o cheiro, sem todo o ritual, tenho livrarias inteiras na palma da minha mão e, querida Tecnologia, tu permites que escolha sem sair de casa, com um simples “swipe”.
Outra paixão: os discos! Eles eram redondos, grandes e tratados com um cuidado “cristal”, giravam no rádio do meu pai e, naqueles momentos, levavam-me em viagens no tempo e no espaço. Cada viagem à discoteca era uma aventura: havia várias na minha cidade. Com a tua influência foram ficando cada vez mais pequenos até que quase se extinguiram. Ainda os tenho mas confesso que, enquanto te escrevo, és tu que tocas aqui ao lado. As lojas de discos, as discotecas aqui da cidade, são agora memórias de infância.
E sabes, querida Tecnologia, tenho saudades desse tal “tempo anterior”, não sou saudosista de todo, mas acho que a relação que temos anula tantas outras e, querida Tecnologia, isso não é bom!
Lembro-me que, quando chegaste com a promessa de encurtar distâncias, todos duvidámos de ti, no entanto, hoje confirmamos esse teu inegável poder: nisso és a maior. Os amigos de longa data que vivem a 3000 quilômetros chegam agora até nós tão rapidamente como os pensamos, mas, querida Tecnologia, por favor não nos separes de quem já estava perto: continuemos a marcar cafés no parque e tardes na praia: através de ti não têm o mesmo sabor!
Vês, querida Tecnologia, chegamos rapidamente ao porquê desta minha carta. O que nos tiras é por vezes superior ao que nos dás! Bem sei que a culpa é nossa, bem sei que te usámos e abusámos mas isso não pode ser a razão para vires substituir o insubstituível. Ás vezes, olho para os sítios onde estás e dou por mim a pensar onde estão as pessoas que vieste substituir, pergunto-me se vieste facilitar aquelas vidas ou, simplesmente, apoderar-te delas. Penso nos empregos que criaste, mas também nos que, por tua causa desapareceram. Querida Tecnologia, não podemos negar o tempo que nos deste, no entanto, parte desse tempo: a parte que devíamos gastar connosco, gastamos contigo: com os teus jogos, os teus telemóveis, os teus computadores e tablets, gastamos a ver a tua evolução, a glorifica-la e a alimentar-te. E tu? Tu bebes da nossa curiosidade e cresces cada vez mais!
Não me julgues, querida Tecnologia! Já te disse que te adoro? Adoro o que fazes pela nossa saúde, o que fazes pela nossa ciência, pela nossa educação! Difícil, querida Tecnologia é afastarmo-nos de ti, e tu sabes isso.
Por tudo isto te escrevo, querida Tecnologia, e já sei que vais torcer o nariz e pensar “porque não te mandei antes um áudio?” pois, por isto mesmo, porque preciso de, por vezes, me afastar de ti! De pegar numa caneta Bic azul e numa folha de papel com linhas e provar que ainda me lembro do que aprendi antes de entrares na minha vida! Preciso de ti, querida Tecnologia, preciso muito até, mas preciso também das coisas que faço tão bem sem ti: preciso dos amigos em carne e osso, de passeios na natureza em que tu fiques distante, preciso de cafés em chávena e almoços longos sem que venhas primeiro tirar as fotos para uma das tuas redes.
Querida Tecnologia, isto não é um adeus: eu chamo-te quando precisar de ti, é um até já, é que, sabes, o problema nem és tu… sou eu!
Com amor,