Permita-se. Seja feliz.

Certas palavras vivem rodeadas de flores e de cheiros tão apelativos que se tomam como garantidas. Nada é de borla e implica muito esforço para se conquistar seja o que for. O amor, que é de todas a cores e maneiras, necessita de muito treino, duma grande musculatura para ser sentido em toda a sua plenitude. Há quem pense que é fácil, mas não passa duma mera ilusão temporária.

Outros vocábulos estão carregados de sons pesados e de energias que incomodam. Mesmo sem que se consiga explicar de modo claro, existe uma certa nuvem negra que acarreta um peso excessivo e difícil de transportar. É o caso do cancro, uma palavra pequena, mas que impõe respeito e faz calar todos o que a ouvem.

Estas letras reunidas deste modo conseguem arrastar tantos com elas e sem esforço de maior. Se alguém é diagnosticado com cancro, a tal junção de células terroristas que se unem para destruir o hospedeiro, não é apenas o visado que fica perdido, mas toda uma família e um conjunto de amigos. O cancro é uma doença democrática e dispara em todos os sentidos.

Cancro. Letras e sílabas que fazem tremer o corpo como se fosse uma descarga eléctrica. Nem a rémora tem esse efeito no ser humano. É um som que fica a ecoar e que badala a toda a hora. Dói como se estivesse a perfurar os ossos, a carne, os músculos, o cérebro, a alma. Dói e continua a doer que as voltas que ele dá são mesmo a valer. E, vestido com uma rede invisível, capta todos em seu redor.

Há que saber aceitar. Ter a dignidade de engolir o orgulho e encarar de frente o bicho que tem não só cornos como também garras e ventosas. Veio para ficar e há que o saber desocupar. Ser humano é saber sentir por inteiro, com corpo e alma que se desnuda e mostra ao natural. Aceitar é o primeiro passo para aquilo que muitos chamam de cura.

Essa não existe, mas há quem acredite. O cancro somente fica adormecido e pode despertar num qualquer dia ou preferir o descanso eterno que a sua obra ficou completa. Contudo, está lá de antenas espetadas num alerta que não se consegue ver, mas sentir. Deixa marcas para sempre. Imaginamos o seu funeral onde a alegria é o mote reinante.

Chore, grite, arranque os cabelos, até porque eles vão todos cair e facilita o trabalho dos químicos, barafuste, dê coices metafóricos, revolte-se, faça o que entender, mas aja. Permita-se ter o seu momento de sofrimento que pode ser um bálsamo e uma terapia coadjuvante. Reaja! Agarre tudo a que tem direito! Seja selvagem o suficiente para perceber quem é.

Então, a nova pessoa vai nascendo, num parto com uma imensa dor prolongada que epidural alguma consegue amansar. O tempo passa a ter outra cronologia e os dias e horas são meros conceitos que habitam ao lado das consultas, tratamentos e do mote inicial: o diagnóstico.

Cada dia descobre-se e sabe que é bem mais forte do que pensava, que os seus limites não existem pois são tão elásticos que vão até ao infinito e ainda mais, que o que considerava como certo era apenas uma imagem holográfica da realidade. Agora a construção do ser é outra e mais elaborada.

As lágrimas também trouxeram a bagagem e surgem sem aviso prévio. O terreno é fértil, mas a essência é que vai comandar tudo. E por mais imprevistos que possam aparecer, tantos e ainda mais, a coragem e a determinação de quem é forte supera todos os contratempos.

O medo, a raiva, a revolta, a ira ou até mesmo o ódio ficam sentados, quietos como cordeiros, mas atentos para as oportunidades que irão surgir. Querem saltar pela boca e fazer mais estragos do que a própria doença. Não ganham. Somente são testemunhas dum percurso que nada tem de fácil. E vão saindo à medida que percebem com quem estão a lidar.

Permita-se sofrer para depois entender como se conquista o amor. Sobretudo o amor próprio, a auto-estima, o saber olhar-se e amar-se como se fosse a pessoa mais importante do mundo. E é. Verdade insofismável e máxima. Cuide-se, olhe-se, descubra-se e ame-se muito. O amor, o que é conquistado a pulso tão duro, é o melhor dos remédios e a mais perfeita terapia.

Se houver cães e gatos nesta equação o caminho tem outra luz e tranquilidade, pois esse amor é o único que é perfeito e nada pede em troca. É esta a justificação para as suas vidas serem tão curta: esgotam-se em amor.

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