O crime perfeito

Bernardo sentia-se jovem. Tinha acabado de fazer quarenta e cinco anos, e quando se olhava ao espelho sabia que parecia exactamente a idade que tinha, mas de espírito sentia que tinha voltado a ter vinte anos. O cabelo preto acusava já algumas preocupações grisalhas, e os olhos verdes tinham rugas à volta, causados pelos sorrisos e pelos enganos da vida. Passou a mão na barba por fazer, mas não se importou. Tinha acabado de chegar de um fim-de-semana romântico em Praga. Ele tinha querido ir para Paris, sabia que as mulheres gostavam do ambiente romântico e onírico da cidade francesa que ele tão bem conhecia. Mas ela tinha outros planos: com um sorriso maroto disse-lhe que o melhor era chegar ao aeroporto e ver qual seria o primeiro avião a partir. Era esse o destino que ela escolheria. Sem saber, sem esperar, sem planos. Aventura. Juventude. Ele tinha adorado a ideia; tinha-lhe tirado dez anos da alma!

Ela era absolutamente maravilhosa. Matilde. Ele enrolava o nome dela na língua e sentia o coração quente, sorria ao pensar nela, nos seus vinte e três anos tão jovens e maduros, tão decidida e inocente. Matilde. Matilde à espera dele para irem para um fim-de-semana romântico, com um ar curioso nos olhos, e depois o brilho quente do sorriso quando o tinha visto chegar. Matilde. Tinha o cabelo comprido e loiro atado num rabo-de-cavalo que ia até ao meio das costas, uma camisola preta com as mangas rasgadas, umas calças justas e uns botins de salto. Não tinha maquilhagem nem grandes jóias, só um colar de ouro fininho, com um crucifixo. E estava perfeita. Quando ela sorria, os olhos castanhos iluminados, aqueles lábios finos e naturalmente cor-de-rosa a mostrarem os dentes perfeitos, ele sentia-se nas nuvens. Era estranho pensar num sorriso inocente com tantas características, mas no sorriso dela podia ver-se toda a beleza e educação, a naturalidade, a inteligência, a bondade. Até o dinheiro, a riqueza. Tudo. E para ele todos estes elementos eram importantes numa mulher com quem Bernardo quisesse fazer vida, estava farto de oportunistas escondidas atrás de quilos de maquilhagem e que nunca eram o que pareciam – nem por dentro, nem por fora.

Matilde. O pequeno crime dele, o grande crime dele. E era um crime perfeito. O proibido, o maravilhoso. Passou a língua pelos lábios ao lembrar-se dela, e decidiu telefonar-lhe.

“Jantamos hoje à noite?” perguntou Bernardo, assim que ela atendeu. Ouviu a sua voz, o seu riso, notou a sua emoção – a mesma emoção que ele sentia, o seu espelho. “E penso que hoje é um dia tão bom como qualquer outro para falar com os teus pais.”

Sentiu a hesitação dela, a surpresa inesperada. Depois, também sentiu o sorriso dela, a surgir devagar no seu rosto perfeito, a iluminar tudo nela. E ele também se sentiu vivo ao ouvir “Combinado, é hoje!”.

Desligou, e pensou nela. Ligou o computador, olhou para os papéis em cima da sua mesa. Assinou alguns documentos, respondeu a alguns emails, atendeu algumas chamadas. Pensou nela, pensou em tudo sobre ela. Olhava para o relógio, para o tempo que não passava. Parecia um adolescente, mas nem sequer se importava, nem sequer se sentia ridículo porque a felicidade não deixava espaço para mais nada. Atendeu uma chamada do seu sócio “Então, está combinado que esta noite jantas lá em casa?” perguntou-lhe. Ele aceitou, nervoso, e desligou.

Matilde, o seu crime perfeito. Matilde, fechou os olhos a saborear o nome dela, o cheiro dela. Naquela noite iam resolver o seu único problema.

Matilde, Matilde sem problemas nem esconderijos. Dele. Matilde só dele.

O único problema, só mais uma noite. O único problema era que Matilde era a filha única do sócio dele.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

A Paz que construímos

Next Post

Downton Abbey: quando a realidade visita a ficção

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Expirar

Nessa tarde soube que ela tinha morrido. Não percebi. Ainda hoje sinto que não percebo totalmente nenhuma morte,…

A Trilogia de Copenhaga

Surpresa com a leitura deste livro, no qual reparei por acaso na Livros & Companhia, no centro da Marinha…

Praia

Das memórias de infância lembro-me de um tio que ia connosco à praia. Era alto e moreno. Para mim era alto, pois…