O Segredo de Joe Gould

No início, encontrávamo-nos no comboio das 6:52. Víamo-nos na plataforma, cada um com um livro debaixo do braço, e sabíamos que se nos sentássemos frente a frente, conversaríamos sobre Literatura. Talvez por isso fingíssemos amiúde não nos vermos, ficando eu a meio da composição enquanto a Cristina se sentava (como era hábito) na parte de trás da primeira carruagem: deste modo cada um podia ler. O ritual manteve-se na estação da São João do Estoril durante os anos da Universidade, entre 1999 e 2002 ou 2003, altura em que a Cristina começou a ir de carro para Lisboa, pondo fim às nossas conversas.

A Cristina é irmã do Paulo, um grande amigo meu daquela época, e foi responsável por eu ter lido Cem Anos de Solidão, O Plano Infinito e… O Segredo de Joe Gould.

Na festa-surpresa que alguns amigos me prepararam no vigésimo primeiro aniversário, o Paulo levou-me o livro de Joseph Mitchell enviado pela irmã (não havia sido convidada). Agradeci, ao que ele retorquiu prontamente que tinha um “V” de volta (não com estas palavras): era um empréstimo e não um presente… achava eu! Não me lembro de nenhuma outra prenda recebida nesse aniversário além da bonita surpresa e d’O Segredo de Joe Gould. As melhores prendas desse ano não ficaram na estante do quarto ou no móvel dos dvds, mas guardadas em mim.

Um dos segredos da escrita de Joseph Mitchell, colunista da revista The New Yorker, foi o interesse que demonstrou pelas vidas de gente com quem ninguém se importava. Tais vidas resultaram em artigos que formam verdadeiros tesouros literários na rubrica “Perfis”, alimentada por Mitchell durante anos. A sua enorme capacidade de observação e a arte para manipular a descrição sem entediar o leitor trataram de fazer o resto.

Foi nesta rubrica que nasceu o seu escrito mais famoso, reunido em livro como O Segredo de Joe Gould. Composto por dois artigos, o primeiro, O Professor Gaivota escrito em 1942, conta a história de Joe Gould, um excêntrico, hilariante e enigmático sem-abrigo que deambulava pelas ruas de Greenwich Village nas décadas de 30, 40 e 50 com um conjunto de cadernos debaixo do braço onde registava A História Oral do Nosso Tempo, um trabalho monumental onde replicava as conversas do dia-a-dia que, segundo ele, mais do que os grandes acontecimentos da História, iriam formar o verdadeiro retrato de cada época.

No perfil de Gould traçado por Mitchell, este oferece-nos com genialidade o quadro de uma época, de um lugar e de um individuo. Talvez um pouco à imagem da ambição do próprio Gould… Mitchell confere a Gould o propósito humano que muitas vezes despegamos dos sem-abrigo com quem nos cruzamos, como se eles não fossem gente como nós…

O segundo artigo – mais extenso – intitulado O Segredo de Joe Gould e publicado na mesma revista em 1964, já depois da morte de Gould, centra-se no segredo e na magnífica empresa levada a cabo por um homem “somente” para contar a história do seu tempo.

Não sei se os dois artigos presentes neste livro são os que mais gosto na obra de Mitchell, mas são seguramente aqueles pelos quais ele é mais conhecido. Comprei outros dois livros de Mitchell (que mais tarde vi numa das feiras de livros velhos do metro de Lisboa por uma pechincha…): Sou Todo Ouvidos, que reúne os seus primeiros trabalho, dando-nos a conhecer a empregada de uma bilheteira de um teatro ou de uma profissional da dança do leque, nos cabarés dos anos 20, por exemplo, e O Fundo da Baía, que comporta meia-dúzia de artigos já da fase “trabalhada” de Mitchell, possuidores de uma qualidade ímpar.

Joseph Mitchell, tendo sofrido de depressão toda a vida, produziu textos de interesse inquestionável para quem se interessa pela vivência da sua época. Talvez a transposição do que ia observando e o abraço com que ele recebia as gentes e os episódios ostracizados constituíssem a sua fuga a uma tristeza que o acompanhou até 1996, ano em que morreu. Com O Segredo de Joe Gould, Mitchell entrou num bloqueio literário que não mais conseguiu furar. Até à sua morte, mais de 30 anos depois, continuou a frequentar a redacção da revista onde sempre havia escrito.

Se há livro em que a forma e o conteúdo ombreiam na grandeza, o segredo deste homem é esse livro, ainda que a conclusão de Mitchell a respeito de tal segredo possa não ser verdadeira…

Mais tarde, comprei o livro, li-o e ofereci-o. Voltei a comprá-lo, numa das tais feiras do metro, apenas para o ter por perto, mas de novo, acabei por oferecê-lo.

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