É bom não seguir todas as regras. Vou indicar um verbo a começar na segunda pessoa do singular:
– Tu tourigas
– Ele tourigas
– Eu não tourigo
– Nós não tourigamos, porque faço parte do nós e não tourigo
– Vós tourigais
– Eles tourigam
Agora explico antes que pensem que emaluqueci de vez. O verbo tourigar, obviamente, não existe, é um recurso retórico. É que andam a plantar por todo o país a casta touriga nacional.
As autoridades que zelam pela promoção do vinho português debatem-se com uma dificuldade em alguns mercados de exportação, nomeadamente de elevado poder de compra e número de consumidores. Por regra, nos chamados países do Novo Mundo (fora da Europa e da Eurásia) e em alguns do «Velho Mundo» (Reino Unido, Escandinavos, Alemanha…) um vinho é sinónimo da sua casta. Portanto, um consumidor pede um syrah, um cabernet sauvignon, um sauvignonblanc…
Em Portugal, a tradição é juntar uvas de diferentes variedades – temos a maior quantidade de cultivares, apenas batidos pela Itália. Se é verdade que regiões doutros países fazem combinações, normalmente há uma cultivar dominante e uma outra para temperar. Nada que se compare com Portugal, onde se juntam quatro, cinco, seis castas. Nas vinhas velhas, agrónomos e enólogos têm dificuldade em identificar todas. Dizem – sem mentir – que numa vinha podem estar 30 castas. Obviamente que explicar isto pode ser complicado, mas reduzir o vinho português a uma só casta parece-me um bocado… como dizer… não é aldrabice, mas… não é… Não sei definir, mas não há nada de criminoso em vender vinho português com uma «marca» vegetal. Não é autêntico (sem veneno).
Alguns produtores tentam apresentar diferenciação (casta portuguesa = exótica) conjugada com segurança. As nossas variedades são desconhecidas no mundo, por isso, fazem lotes com uma casta portuguesa e com outra em que o consumidor reconheça facilmente. Não sou técnico de marketing, não sou comercial, não tenho de vender uma única garrafa, mas 24 anos de jornalismo dão-me algum direito a questionar a aposta numa só casta: a touriga nacional. Portanto, sou um professor bitaites.
Bordéus reconhece-se pela cabernet sauvignon (tinta) e pela semillon (branca), a Borgonha pelas pinot noir (tinta) e chardonnay(branca) – tal como Champanhe –, a Alsácia e a Alemanha têm a riesling (branca), a África do Sul apresenta a pinotage (tinta), a Argentina mostra a malbec (tinta), o Chile adoptou a cármenère (tinta), o Uruguai escolheu a tannat (tinta), a Austrália é famosa pelo shiraz (syrah – tinta), a Nova Zelândia pela sauvignonblanc (branca), a Áustria pela (quase impronunciável) grünerveltliner (branca).
Se é verdade que a identificação dum vinho por casta facilita as escolhas e pode definir a origem, é também verdade que, por exemplo, o Brasil está a mostrar cansaço face à malbec. Derivado de acordo preferencial com a Argentina, os vinhos de Mendoza são os mais acessíveis em termos de preço. Aliás, os argentinos buscam presentemente alternativas geográficas a Mendoza e aptidões doutras castas. Modestos vinhos europeus vendem-se no Brasil a preços de ourivesaria.
Pois, e como se explica o que é um vinho português? Já saberem onde fica Portugal é bom. Saberem que se faz cá vinho é ciência para intelectuais. Posto isto, penso que tanto faz mostrar uma casta, como um ramalhete delas. A decisão foi tomada por quem deve. A escolha recaiu na touriga nacional, uma casta 100% portuguesa, com características próprias, com grande qualidade enológica e com bom trato agrícola em muitos locais. Curiosamente, esta variedade foi levada há muito tempo para a Austrália.
A touriga nacional é pouco produtiva, pelo que estava quase extinta, quando a identificaram como fabulosa no fabrico de Vinho do Porto e do Douro. Hoje sabe-se que tem o berço no Dão e que o Douro a adoptou há muitos anos. Quando se começou a reconhecer o potencial desta casta, que faz vinhos muito fáceis de agradar, toda a gente garantia que tinha grandes vinhedos de touriga nacional. Talvez até há menos de dez anos contava-se a seguinte anedota:
– Onde está plantada a maior área de touriga nacional?
– No contra-rótulo.
Hoje não é assim. A touriga nacional é, de facto, fabulosa. Nas zonas mais frescas, mostra-se com aromas florais, com destaque para as violetas. As áreas mais quentes conferem-lhe aromas de frutos vermelhos e do bosque. Onde o calor aperta, surgem as geleias e compotas de fruta vermelha.
As empresas existem para dar lucro e quem tem de vender tem de fazer opções. A facilidade com que se fazem vinhos agradáveis e a adaptabilidade agronómica tornaram a touriga nacional na rainha. O que acontece é que de Trás-os-Montes ao Algarve há talhões e talhões desta cultivar.
A touriga nacional é intensa. A sua presença nota-se com facilidade. Tendo provado vinhos com diferentes composições, só conheço uma variedade capaz de a vergar: a cabernet sauvignon – reconhecível pelos aromas vegetais, duns suaves aroma e paladar a pimento até ao pimentão.
O vinho também tem modas, pelo que há práticas enológicas que se usam e abusam. Se dá resultado, porquê fazer diferente? É verdade. Juntemos uma casta e um método e temos uma vasta escolha de vinhos quase iguais – ainda que bons e excelentes. Muita gente – certamente a maioria – bebe vinho sem ter uma paixão, embora aprecie. Aqui é onde melhor podem brilhar os vinhos de fácil consumo – o que não tem mal absolutamente nenhum. A fruta sacia a gulodice e as flores insinuam-se sedutoras.
Porém, profissionais, especialistas, letrados, desportistas do copo, aprendizes e novatos têm normalmente uma sede de novidade. Aí tramam-se as coisas, pois a touriga invadiu o país e apenas uma curta paleta doutras variedades surge com frequência no comércio de fácil acesso.
Outro dia estive no Dão, onde experimentei vinhos de vários produtores. Confesso que saí um bocado enjoado. A selecção, a prática enológica, a moda ditam uma caricatura. Em alguns casos, cheguei a sentir-me dentro dum jazigo, após o funeral. Exageros há em toda a parte e é evidente que há muitos vinhos excelentes de touriga nacional… mas por amor da Santa!… abrandem um bocadinho. Além do mais, a vaga é feita de mimetismos enológicos.
A touriga nacional tem uma irmã, menos conhecida, que é a touriga franca. Na verdade, não é uma casta franca, mas híbrida. Chamava-se touriga francesa, mas, para que não pensassem que viesse da Gália e isso prejudicasse o negócio,mudaram-lhe o nome. Entretanto, a jaen continuou jaen, tal como a aragonês continuou aragonês –muitos insistem em usar a grafia da confusão do século XIX, metendo-lhe um «Z» no fim. A Norte chama-se tinta roriz e, em Espanha, é tempranillo.
A touriga francesa é filha de touriga nacional e de moreto. A primeira tinha difícil trato na terra do Douro, mas fantástica na adega. A outra é o oposto. Podia ter nascido com o defeito das duas, mas a mistura calhou tão bem, quea touriga franca é a variedade tinta com maior área de cultivo no Douro. Há quem diga que a fusão foi natural e quem garanta que foi inventada e que se apelidou de francesa (obrigando a que a outra passasse a «nacional»), por causa da moda, que se vivia no século XIX em França, de inventar híbridos: a mais conhecida é cabernet sauvignon, filha de cabernetfranc (tinta) e sauvignonblanc (branca).
Curiosamente, a touriga nacional dá-se melhor em todo o lado, do que a touriga francesa, que se mostra frequentemente caprichosa. Muitas pessoas do mundo do vinho assinalam que não fosse a resmunguice, a touriga franca seria a grande casta nacional. Ao contrário da touriga nacional, a touriga francesa não vai bem sozinha, precisa de companhia. É a grande responsável pelo carácter identitário do Douro. Sabe-se que não gosta dos ares marítimos e agora…
Agora, de Norte a Sul, andam a tourigar a francesa. Minha Nossa Senhora, não banalizem a francesa!