A Nossa Melhor Versão é (Im)Perfeita

Andava eu na escola primária, quando o namorado da minha professora decidiu aparecer na sala de aula. Um homem que se fazia notar, não pelo carisma, mas pela altura e peso que, à data, me pareceram exagerados. Encostado à ombreira da porta, a olhar-nos de cima, encontrou na frase seguinte a sua melhor lição, “têm de estudar muito, para depois ganharem muito dinheiro e comprarem Porsches, como eu”. Não o percebi na altura e continuo sem o perceber agora.

A minha incompreensão não teve, nem tem, que ver com a falta de gosto por carros. Quando era miúda adorava brincar com carrinhos e hoje gostaria de ter uma bomba na garagem, embora não um Porsche, especificamente. Na altura, eu era apenas uma criança e já se sabe que as crianças são literais. A aquisição de um carro num futuro longínquo não era coisa que me ocupasse os pensamentos, mas senti a pressão.

Talvez hoje seja difícil ouvirmos um discurso semelhante – até porque, passados quarenta anos, já todos percebemos que não é a estudar muito que se compram Porsches -, mas a pressão não só continua a existir, como subiu de tom.

Se antes era preciso estudar para “se ser alguém” no futuro, hoje é preciso estudar para se ser o melhor no presente. Melhor do que o vizinho, melhor do que o primo, melhor do que o colega. Os pais vivem obcecados com os resultados escolares dos filhos. Os professores vivem assombrados pelos rankings das escolas. Os miúdos vivem deslumbrados com a competição.

E não é só na escola que é preciso ser o melhor. É preciso ser o melhor no desporto que, por estes dias, tem necessariamente de ser competitivo. E é vê-los a correr entre provas e torneios que dão sempre óptimas fotografias para o Instagram, onde se espalha todo o charme e magia que permitem que sejam, também, os melhores socialmente.

Só que, verdade de La Palisse, a perfeição não existe. E o que acontece quando a pressão para sermos perfeitos se faz sentir é o medo de falhar, de não sermos capazes, de ficarmos aquém das expectativas que os outros têm para nós, quando devemos ser nós a definir os parâmetros pelos quais nos queremos reger.

A exigência pela perfeição traz-nos a frustração de nos sentirmos incapazes, diminuídos em relação ao outro, balizando aptidões e competências como se fossemos todos pequenas criaturas formatadas para um mesmo fim.

Acreditamos que, ao exigir os melhores resultados e os melhor desempenhos, estamos a preparar as crianças e os jovens para os desafios da vida, a estimular as suas aptidões. Temo que estejamos apenas a promover uma realidade onde não há lugar ao erro, promovendo sentimentos de frustração que limitam a sua coragem para se afirmarem, ao mesmo tempo que os impedem de aprender a lidar com as adversidades. E estamos, sem nenhuma dúvida, a condicionar a sua criatividade – esse lugar onde surgem as grandes ideias que levam à evolução -, obrigando-os a ocupar todo o seu tempo na tarefa de serem melhores.

Queremos criar adultos capazes, mas capazes de quê, exactamente?

O que podemos e devemos exigir, a nós e aos outros, é que sejamos a melhor versão de nós próprios, aceitando que nem isso é sempre possível.

Gostava de dizer ao namorado da minha professora primária que apesar de ter estudado, não comprei um Porsche. Contudo, tenho um carro que cumpre e tenho conseguido esse feito magnífico que é o de seguir feliz.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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