Se pudéssemos enquadrar a relação histórica que existe entre as mulheres e a canábis como um status do Facebook, seria: é complicado. Não pelo que é actualmente, mas pelo que já foi em tempos. À partida poderíamos dizer que, actualmente, não existe sequer uma relação, mas, se recuarmos no tempo, vemos que ambas estão fortemente interligadas. Contudo, se olharmos para o panorama actual, percebemos que os seus caminhos não se cruzam em nenhuma forma especial: a canábis é percepcionada, na generalidade, de uma forma negativa, a que crianças, adolescentes, adultos, homens e mulheres fogem, com um argumento que vem sido veiculado ao longo do tempo – a canábis é má, aditiva e pode causar sérios problemas a quem a consome; por seu turno, a mulher – aqui poderíamos desenrolar uma nova conversa, mas fica para outra vez – continua a lutar pelos mesmos direitos que o homem, recusando uma visão paternalista, condescendente e, como vimos ao longo da história da humanidade, rejeitando o seu lugar secundário na família, na sociedade e no mundo.
Porém, a relação entre ambas, para além de histórica é uma relação de simplicidade e resiliência que se veio a alterar no decorrer na história da humanidade.
Escreve Ellen Komp, activista e defensora do uso de canábis, no seu livro Tokin’ Women: A 4,000-Year Herstory, que, ao longo da história do mundo, foram as mulheres que iniciaram e impulsionaram o cultivo e uso de canábis. A autora descreve uma relação que remonta ao terceiro milénio antes de Cristo, no qual Ishtar, uma proeminente deusa Suméria, foi associada à canábis, num tempo em que as mulheres praticavam as artes curandeiras, utilizando canábis sem qualquer restrição.
Sabemos, ou melhor, temos registos que nos dizem que a relação entre as mulheres e a canábis é longa e com alguns períodos negros na história do mundo. O que não sabemos é qual será o caminho que esta relação irá percorrer: no contexto actual, por um lado, vemos que há um crescente número de países que têm vindo a legalizar o uso desta planta para fins medicinais – Uruguai, Canadá, Tailândia -, e, por outro lado, cada vez mais mulheres estão à frente da luta para que o uso da canábis seja normalizado.
No entanto, no decorrer do tempo, esta relação, bem como a conotação do uso da planta em si, foram sendo alteradas de acordo com as filosofias e as crenças que moldaram a história da humanidade, alterando também a percepção e a conotação do seu cultivo e utilização. Seguindo uma linha cronológica, foi a partir do primeiro milénio antes de Cristo que a canábis foi cultivada, em regiões como a China, a Índia e o Egipto e utilizada para inúmeros fins como a fabricação de fibras para vestuário e cordoaria, óleos, papel, incenso, bem como para a resolução de problemas de saúde.
Sabe-se que o manuseamento da canábis, entre outras ervas, como a mandrágora, para fins medicinais e alívio de diversas dores, era da responsabilidade das mulheres curandeiras. Joana D’Arc, por exemplo, sabendo nós do seu destino, foi perseguida por utilização de ervas para fins considerados “mágicos”. Sabia-se da utilização das propriedades curativas de várias plantas para, por exemplo, o alívio das dores de cabeça, ou a prevenção de hemorragias durante e após o parto. Um dos pontos altos desta relação aconteceu no século XIX, quando J. Russel Reynolds, médico da rainha Victoria, lhe administrou um extrato à base de canábis para o alívio das dores menstruais. Outro exemplo que ilustra a forte e histórica relação entre as mulheres e a canábis é, segundo Ellen Komp, o testemunho de Harriet Martineau, socióloga inglesa que, também no século XIX, na sua publicação Eastern Life Present and Past, descreve a experiência que viveu no Médio Oriente: “como as mulheres judias não podiam fumar canábis durante o Sabbath, as mulheres árabes sopravam-lhes o fumo para cima”. Ainda no mesmo século, Louisa May Alcott, autora do célebre Little Women, termina um dos seus contos – “Perilous Play” com a seguinte frase: “Heaven bless hashish, if its dreams end like this!”. Mais tarde, já na primeira metade do século XX, o The Journal of the American Medical Association recomenda umas quantas gotas de um extracto de Cannabis para atenuar as enxaquecas causadas no período menstrual. Algum tempo depois, em 1970, é Maya Angelou, quem enaltece as virtudes da canábis, na sua publicação “Gather Together In My Name”, descrevendo o episódio de como conheceu e experimentou pela primeira vez a canábis.
Já no final do século XX, foi a própria Ellen Komp que se deparou com a guerra contra as drogas e, graças ao livro The Emperor Wears No Clothes, de Jack Herer, transformou totalmente todos os preconceitos que tinha em relação a este assunto e, desde a década de 90, se tornou numa das mais importantes activistas que luta para que a normalização da canábis e a sua relação com as mulheres seja reposta, fazendo justiça à sua história.
Foi neste seguimento que surgiram grupos como como o NORML Women’s Alliance, ou o Women Grow, nos EUA, que pretendem desconstruir a actual demonização do consumo de canábis e trazer para debate público os seus benefícios, bem como a sua forte conexão com as mulheres e veicular a informação necessária para que exista uma transformação na mentalidade nas sociedades actuais no que diz respeito à utilização de canábis bem como a sua relação histórica com as mulheres.
Portugal, que a partir de 2001, é apontado como um exemplo a seguir, devido à política de descriminalização das drogas, deu, no início de Fevereiro de 2019, um grande passo: entrou em vigor a lei que permite a utilização da canábis para fins medicinais. De acordo com a nova lei, a recomendação dos novos medicamentos à base de canábis só pode ser feita caso os tratamentos convencionais – a pacientes com doenças oncológicas, por exemplo – tiverem efeitos indesejados.
Assim e talvez o mais importante, é que a legalização da canábis para fins medicinais irá permitir aos pacientes tomar controlo da sua própria saúde, um factor psicológico imprescindível para aqueles cujas vidas foram, efectivamente, afectadas sem a sua permissão.
Isto significa que, se por um lado Portugal, a par de países como o Uruguai e o Canadá, está no bom caminho para que a normalização da canábis seja uma realidade, por outro lado, ainda é cedo para entendermos se o estado da relação entre a canábis e as mulheres irá manter-se “ é complicado” ou se estas medidas irão dar-lhe um novo rumo, menos controverso, preconceituoso e desinformado. Teremos de aguardar pela forma como a possível normalização do cultivo e uso da canábis irá influenciar a relação que tanto homens como mulheres terão com esta planta, quer no âmbito recreativo quer medicinal.