Os carteiros não precisam de saber fazer contas. Os carteiros só precisam de saber onde as pessoas moram. Eu quero ser carteiro e não percebo porque me obrigam a estar sentado na sala a ouvir a velha a ensinar contas de vezes.
Cinco vezes quatro?, vinte e cinco, menina Maria vai ficar de castigo no canto da sala, ordena a velha, as orelhas de burro a enfeitá-la. E eu a querer bazar dali para fora, quero é ser carteiro, não quero fazer contas. A velha fuma como os homens, veste-se como eles e já a vi beber pela garrafa. A velha parece mesmo um homem, a professora de português não, é deslumbrante, tem umas mamas empinadas e um sorriso bonito. Já fiz aquilo algumas vezes a pensar nela, na casa de banho e na minha cama. O Zeca contou-me que no outro dia também fez aquilo a pensar na Paulinha cavalona, diz que ela sabe dar beijos de língua. Eu não quero dar beijos de língua, fico com nojo só de pensar em lamber a boca das raparigas. O pai também gosta de mulheres com mamas empinadas, diz que são mulheres com nervo, cala-te, homem, não digas essas coisas à frente do miúdo. A mãe não tem as mamas tão empinadas mas é bonita na mesma. Se não tivesse amamentado dois filhos talvez ainda hoje as tivesse empinadas tal como as tinha na flor da idade, vocês não sabem o que é ser mulher, resmunga a mãe, enquanto nos serve aquele empadão delicioso que só as mães sabem fazer.
Nove vezes dois, dezoito, seis vezes cinco, trinta, mas o que eu quero é ser carteiro. Quero levar as boas notícias às pessoas, quero ver as caras de felicidade ao abrirem os envelopes. No outro dia, a vizinha Aurora chorou ao abrir uma carta do hospital, não chores mulher, a vida é assim, todos partimos para junto Dele. Que este mal nunca nos aconteça, pedia a mãe, não percebi nada do que aconteceu mas a mãe sabe, parece que foi a vida que lhe fugiu dos pés, isto são palavras da mãe e eu não sei bem o que significam. Não me importei que ela chorasse, ela é uma grande bisbilhoteira e eu não gosto da vizinha Aurora, ouvi a mãe dizer que ela quer dar fé de tudo.
Quatro vezes seis, vinte e quatro, oito vezes sete, cinquenta e seis e o que eu quero é ser carteiro. Para analfabeto já basta o teu tio, avisa-me sempre a mãe. A mãe refere-se muitas vezes ao tio António como o estúpido do meu irmão. O tio António tem quase dois metros de altura e a constituição de um barril. Trabalha no matadouro de porcos da aldeia e a mãe diz que ele parece um. Come com as mãos e arrota à mesa, cheira a refogado debaixo dos braços e convida toda a gente para beber uma fresquinha, quando bebe bagaço canta fado como se estivesse a uivar. Nas vezes em que se deixa dormir no sofá da sala fica horas a ressonar, talvez por isso nunca tenha casado, as mulheres não gostam de homens brutos e que cheirem mal. A mãe e o pai discutem muitas vezes por causa do tio António, o teu irmão já tem idade para arranjar mulher e casa, devia fazer-se à vida e desamparar-me a loja, eu sei, homem, já tive essa conversa com ele, sabes que não posso metê-lo fora de casa, na rua, é meu irmão, infelizmente prometi à minha mãe que olhava por ele. A sorte é que o pai passa grandes temporadas fora por conta do trabalho de caixeiro-viajante, tem várias malas cheias de cigarros, caixas de sabão, objectos de vidro e panelas que vai vender nas terras por onde passa. Um homem pertence aos sítios que lhe dão de comer, a vida é feita de sacrifícios, quem sabe um dia terei um bom emprego que nos permita mudar para uma casa maior. Os adultos têm constantemente estas conversas e o pai fala sempre nisto nos fins-de-semana em que não vai trabalhar.
Os carteiros também andam de morada em morada como o pai. E eu tenho o sonho de ser carteiro. Não gosto de fazer contas e não quero estar na aula a ouvir a velha, dois vezes três, seis. Quero usar uma sacola ao ombro carregada de cartas, ser um carteiro de bicicleta, ter um chapéu de carteiro, entregar as missivas.
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No dia em que encontrei o diário com as minhas memórias de infância, encontrei também a antiga máquina de escrever da mãe, com a qual eu redigia cartas para destinatários inventados, fingindo depois ser o carteiro que as entregava. O despertador já tocou e eu continuo deitado. O edredão aquece-me a preguiça, olho pela janela uma última vez, o dia também despertou cinzento. Todas as manhãs ao acordar – enquanto leio excertos do diário e recordo os episódios da altura em que os sonhos ainda eram esperança e liberdade – penso como a vida é irónica e como nos castiga os sonhos e as vontades. Os ponteiros dizem que estou atrasado. Despacho-me sem grande empenho, pego na pasta, nos livros de exercícios e no livro das tabuadas. Daqui a meia hora estarei a ensinar contas de vezes, nove vezes nove, oitenta e um.
Afinal, um homem pertence aos sítios que lhe dão de comer.