Encontrei um sorriso perdido, no rosto de uma criança que chorava sozinha, na berma de uma estrada. As lágrimas, do frio, rolavam-lhe pelo rosto cheio de marcas, de tudo o que lhe faltava. Tinha, também, demasiadas tatuagens, feitas com os desenhos de tudo o que lhe sobrava. As marcas do tempo e as dores eram mais do que evidentes, naquele rosto de criança carente, onde mesmo assim restava espaço para um sorriso.
Olhei-a atentamente, sem que ele me visse!
Tinha os olhos escuros, tão negros, quanto negra era a sua vida. Tinha o rosto sujo, numa mistura de lágrimas e de pó que o mundo espalhava sobre ela. Era um rosto que devia ter a beleza e pureza de uma criança, mas estava envelhecido pelo peso do sofrimento.
Naquela face não existia a pele de seda, que habitualmente veste as crianças, que têm um saco cheio de sonhos. As crianças que conhecem o calor de um abraço. As crianças que sabem dizer que existem coisas de que elas não gostam. Crianças que tendo tudo são capazes de chorar dizendo que lhes falta algo. Enquanto eu, tinha ali à minha frente, um rosto de quem nada tinha. O rosto de quem não sabe onde fica a sua casa. A criança que se esconde ao fundo da rua, num cartão velho de uma televisão luxuosa e que durante a noite trava batalhas ferozes contra o frio, que teima em ataca-la todos os dias.
Aquele corpo frágil e débil vestido com roupas que não eram suas e que não sabia a quem pertenciam. Roupas que encontrou, enquanto revoltava mais um caixote do lixo, em busca dos restos do mundo, que lhe enganavam a fome. Tinha as encontrado, ali espalhadas pela rua. Roupas que tinham pertencido a quem não lhes dava valor. Roupas quase novas, porque quem as atirou fora tinha dinheiro para comprar o que não lhe fazia falta.
E ela, a pobre criança com frio e fome sentia-se uma princesa vestida com aquelas roupas. Uma blusa vermelha que ela usava como vestido. Um casaco preto que lhe servia de gabardine. Umas botas castanhas que lhe fugiam dos pés, deveriam ter uns dois ou três números mais, do que o tamanho dos seus pés doridos de tanto caminhar. Contudo, ela viu-se ao espelho, na montra de uma loja fina por onde passou e sentiu-se uma rainha. Apenas os olhares de censura e desprezo que vinham do lado de dentro lhe fizeram lembrar que lhe falta tanta coisa, que aquele mundo nem sequer conhecia.
O dia estava frio, a tarde prometia chuva e a noite seria ventosa. No entanto, aquela criança continuava a caminhar, pela rua abaixo com o mais lindo sorriso que eu já tinha visto. Aquela criança sorria para a vida que lhe roubava quase tudo. A vida que só sabia proteger os meninos ricos que não conheciam o sabor do sofrimento e da fome, e que, mesmo assim se queixam e faziam birras para exigir aos pais mais um brinquedo novo. Aquela criança que nunca teve um brinquedo e que todos os dias passava fome e frio desfilava ali à minha frente vestida com um lindo sorriso e com uns maravilhosos trapos que o mundo já não queria.
Não tinha nada, apenas um sorriso maravilhoso, que me ensinou a sentir gratidão por tudo o que tenho.
Acelerei o meu passo, para ficar lado a lado com ela. Precisa que ela me visse, que reparasse em mim. Precisa abraçar aquele sorriso para ela perceber o tamanho da minha felicidade, por me ter cruzado com ela.