Ela tinha desaparecido há 22 anos anos. Nesta noite, fazia 38 anos.
João era demasiado jovem para se lembrar, mas sentia uma inexplicável ligação a essa prima e a essa desgraça que tinha chegado numa noite de 1991. Ele lembrava-se dela, lembrava-se de a ver comer doces às escondidas, e de ela lhe pedir um “shhh” malandro, a sorrir; lembrava-se dela a correr com as irmãs, a ajudar a tia a fazer bolos. A prima Tininha. Durante toda a sua vida tinha-se acostumado a ouvir “Foi antes da Tininha… pronto…”, deixando aquele ‘pronto’ em suspenso, querendo justificar, explicar, num luto contínuo por não entender. A vida daquela família estava dividida, temporalmente, entre um “antes, pronto” e um “depois, pronto”. Nenhum deles se atrevia a falar de morte, de nunca mais a ver. Não lhes passava pela cabeça, nem sequer pairava como uma sombra quando pensavam nela; era um conceito que simplesmente não conheciam, ou que a mente rejeitava.
Naquela noite, celebravam mais um ano de vida da Tininha, sem querer recordar que isso significava também mais um ano de ausência. Ele sentou-se no sofá com o avô e a tia a ver o jornal, atentos à surpreendente notícia de abertura: umas raparigas que tinham sido encontradas após 10 anos de rapto e cativeiro. Toda a família se calou. As primas pararam de falar com a irmã dele, e a mãe deixou de lavar os pratos; o pai sentou-se ao lado dos avós e apertou, ao de leve, o ombro da tia. Ele sentiu o ambiente de esperança, os olhos brilhantes, o coração a palpitar alto, a querer sair do peito. Como se tivessem encontrado a solução, como se tivessem visto a própria Tininha. “Dez anos…” a tia olhou para o avô dele “é possível, não é?”. O avô sorriu-lhe: “Claro! Eu sinto que ela está perto, filha. Sinto mesmo que estamos perto de a achar”, respondeu o avô dele. A tia limpou uma lágrima a sorrir; Tininha era a filha mais velha dela. João sentiu um aperto no peito, não de esperança mas de medo que aquela esperança fosse vã, que Tininha não tivesse fugido de um cativeiro de vinte anos, que não estivesse a chegar. Que estivesse presa, que estivesse a sofrer horrores, que não se lembrasse deles. Ou pior.
Decidiu sair. Pensava em coisas que não queria, tinha lembranças que não tinham sido convidadas, e precisava de beber qualquer coisa. Não se conseguia desligar daquele limbo familiar, daquela prima misteriosa protagonista de um desaparecimento cruel. Não conseguia. E não conseguia ver a família a viver naquela pausa louca, como um filme que não avança, que não avança, uma imagem estanque, parada, eterna, que só continuará depois de a encontrarem. Se a encontrarem.. Sentou-se ao balcão do bar do costume e pediu uma cerveja. Pôs as mãos na cabeça e despenteou o cabelo, tentando afugentar ideias e sentimentos indesejados. Sentiu-se observado, e olhou para trás. Viu um rapaz novo a aproximar-se.
“És o João?” perguntou ele.
Ele mal o olhou. Não o reconhecia.
“Sim” disse.
“Eu também sou o João” riu-se ele, desajeitadamente. “Sou filho de uma prima tua.”
Ele olhou-o com olhos de ver: semicerrou as pálpebras, franziu o sobrolho e ficou muito tempo a pensar, a tentar reconhecer as feições, o cabelo, o sorriso. Analisou, e pensou, e analisou, e sabia que conhecia aquela cara de algum lado, de algum bar, de algum lugar, de alguma foto… Quando o reconheceu, quase que desmaiou.
“Tininha?”
Os olhos dele brilharam de alegria.
“Sim! Sim, sou filho da Cristina!”
“Ela… onde está ela? Como está ela?”
O rapaz coçou a cabeça, nervoso. “Nunca a conheci. Dizem-me que morreu no parto, quando eu… Tenho vinte e um anos. Eu fui adoptado por umas pessoas que a conheciam, que a tinham ajudado durante a gravidez. Mas só agora consegui descobrir-vos, só agora é que…”
Deixou em suspenso. O rapaz olhava nervoso para João.
João pensou na Tininha. Pensou na noite em que ela tinha desaparecido, lembrou-se de ouvir um choro abafado na casa de banho no dia anterior, de a ver tocar na barriga antes de adormecer. Lembrou-se, ou então quis lembrar-se, imaginou e quis que fosse uma lembrança. Tininha. Deixou umas moedas em cima do balcão e levantou-se. Tocou no braço do rapaz.
“Então anda. Estamos há vinte anos à tua espera.”