Enquanto espalhava as cinzas no mar, a raiva fugiu com o vento. Uma calma imensa nas mãos, na pele, nos pés. Uma fraqueza nas pernas, de tanta calma.
Tinha acabado.
Reconfortou-se ao pensar que a morte poderia apagar passados. Talvez existisse a memória, mas agora a continuidade daquele passado, um suposto presente e um suposto futuro, tinham deixado de existir. O fio estava quebrado. Nada mais sobrava.
Nada mais sobrava.
Se ignorarmos a história e se nada nos ligar ao passado, ele morre com a pessoa que matamos. Morrem os dois, as cinzas são atiradas ao vento, e nada mais há. Só calma e esquecimento. Nova vida. É simples. Tinha sido simples.
O corpo já nem tinha mazelas, as nódoas negras tinham ficado amarelas e tinham acabado por desaparecer. Os cortes tinham sarado numa cicatriz tão rosada que se confundia com os lábios e com a pele. Os ossos partidos já estavam todos curados e de volta ao sítio. Estava nova e plena. A força bruta da língua e das mãos dele, e depois o veneno nas veias, nos órgãos, nos olhos. Veneno necessário. Veneno que era uma borracha de pessoas, um corretor de pretéritos. Tudo longe, tudo inexistente. Porque ao apagar aquela pessoa, tinha apagado tudo o que aquela pessoa tinha feito e tinha sido. Como uma memória a desaparecer, como areia a cair entre os dedos, como a Sara bíblica de sal que tinha sido levada pelo vento e pelas tempestades. Não havia campa, nem família, nem nome.
Apertou a mão da filha com força.
Tranquilidade.
O monstro que lhe batia, nunca existira. A filha olhava-a, atenta, na expectativa de saber se o monstro que espreitava na escuridão voltaria. Não, amor, não. Aquele monstro não voltará a invadir-te os lençóis.