Chegou ao meu conhecimento recentemente que um grupo organizado de activistas ambientais intitulado The Tyre Extinguishers chegou a Portugal, tendo encetado acções de protesto que consistem no esvaziar pneus de veículos escolhidos pelos próprios, deixando um folheto no vidro da viatura que clarifica as suas razões para tal.
Aparentemente, no ponto de vista destes cidadãos, os “sugadores de gasolina”, como pitorescamente intitulam os veículos visados (até porque a esmagadora maioria destes é a gasóleo), e por si escolhidos fazem parte de um grupo de veículos onde se encontram os SUV e veículos de tracção às quatro rodas, que, “foram a segunda maior causa do aumento global de emissões de CO2 na última década – mais do que toda a indústria de aviação.”
Aparte o argumento do documento falhar estrondosamente não só por ser incompleta, mas por estar a onerar um grupo de veículos dentro de um sector específico, ignorando a totalidade das restantes causas, incluindo as que se incluem no sector (a título de exemplo, os veículos pesados de transporte de bens constituem a “fatia de leão” mais expressiva per se), o facto do protesto/acção (e excuso de me alongar no enquadramento político-legal possível que esta acção pode ter) visar cidadãos específicos é de um incrível egoísmo e incapacidade de sentir empatia pelos outros.
Entenda-se: não estou a dizer que não devemos lutar pelo nosso “pale blue dot”, como lhe chamou Carl Sagan, mas devemos lutar nos campos específicos, com os argumentos correctos, com a razão do nosso lado, arrastando o maior número possível de cidadãos para a nossa causa. E sou o primeiro a defender a causa ambiental.
Simplesmente causar dano aleatoriamente aos nossos companheiros de batalha sem uma razão clara, ou uma opção (sim, porque para muitos donos de “sugadores de gasolina” este é o único meio de transporte para um hospital, um trabalho, uma consulta, e não têm outro porque simplesmente não têm meios para tal) é apenas de uma ignorância, incompetência e falta de visão atroz.
A “verdade” defendida por estes activistas está aqui a ser imposta aos cidadãos visados com a inclusão de um dano directo à propriedade dos mesmos, ou seja, alienando-os directamente da causa – qualquer que ela seja, e por mais correcta ou justa que seja.
O grupo de cidadãos que ainda não tenha opinião formada e que seja confrontado com esta situação será de certa forma levada a questionar-se: “serei alvo da mesma forma de activismo?”, “e se fosse eu?” ou “quem causa dano e incómodos a terceiros estará do lado correcto da questão?”.
Este protesto, como todos, originará uma tomada de posição individual de cada um dos cidadãos que é confrontado com a situação.
Ora, o ser humano tende a polarizar todas as questões, numa tentativa de reduzir o número de opções a tomar, e consequentemente reduzir o ruído inerente a uma qualquer tomada de decisão. É uma forma inconsciente de tentar “controlar” o mundo que o rodeia. Como é óbvio, se uma das opções implicar a existência de qualquer tipo de entropia ou caos, o ser humano (uma larga maioria) tomará a outra opção.
Esvaziar pneus e causa danos a terceiros, sem uma confrontação, ou uma razão clara que implique directamente e inequivocamente o visado enquadra-se totalmente na noção de caos.
Assim, a imposição de uma “verdade”, seja porque meio for gerará duas respostas possíveis – a associação à dita “verdade” ou a dissociação da mesma. Neste formato polarizado e tendencioso, a associação com essa “verdade” gerará um processo mental enquadrável no âmbito do fanatismo.
O sentimento de inexorabilidade sentido pelo forçado a aceitar a “verdade” originará um processo de negação do escrutínio, e de todos os formatos, respostas e argumentos que não se enquadrem nessa “verdade”. O mundo torna-se preto e branco, “eles contra nós”, e todos sabemos onde esse formato de polarização acaba.
Já no caso da resposta dissociativa da “verdade”, o ser humano negará com toda a veemência possível a mesma, por colocar em questão o seu direito a questionar, escrutinando a “verdade” ad infinitum até se sentir seguro de que os argumentos que desconstroem a “verdade” são os mais adequados. E assim negá-la-á.
Ora se pretendemos ser ouvidos, e a nossa “verdade” respeitada, devemos sujeitá-la ao escrutínio em cada momento da sua transmissão. Devemos abri-la e nós próprios duvidar dela, até porque verdades supremas não existem (normalmente as que assim se intitulam chamam-se dogmas, e não são passíveis de comprovar de maneira nenhuma).
Chamado o visado à causa do escrutínio do tema, não só demonstramos respeito pelo visado, como respeito pela “verdade” que queremos partilhar, e talvez, apenas talvez, possamos beneficiar de um outro ponto de vista, se calhar mais distanciado, mais adequado, que irá ulteriormente beneficiar a nossa “verdade”.
E o visado, por ser integrado no processo, e fazer “parte dessa “verdade”, estará tão disposto a defendê-la connosco, ele próprio a postulando, e ensinando a terceiros, com a mesma veemência, respeito, e noção de aprendizagem contínua.
No caso dos activistas The Tyre Extinguishers, e o seu protesto que mais dano causa aos donos dos “sugadores de gasolina” que propriamente benefícios ao clima (se tivessem consultado dados sobre o tema percebiam a inconsequência dos moldes do protesto. Comparativamente, se os activistas prescindissem dos seus telemóveis os benefícios para o clima seriam maiores), talvez assumir uma posição mais assertiva, informada e agregativa dos visados tivesse melhores resultados. Até porque se calhar pedir em vez de danificar origina empatia pela causa, e cada um que adira à luta contra as alterações climáticas, e por inerência contra as causas subjacentes às mesmas (chegaremos lá noutro artigo posterior), é mais um a aprender a “verdade”, e a predispor-se a ensiná-la a terceiros.
E devemos sempre lembrar-nos que a “verdade” está sujeita a interpretações, pontos de vista e aprendizagem contínua.
Para estes activistas os “sugadores de gasolina” é a única e a maior, relembrando que estes veículos “foram a segunda maior causa do aumento global de emissões de CO2 na última década – mais do que toda a indústria de aviação.”, conforme escreveram, deixando de parte o restante consumo energético (61,3% de toda a produção de CO2) e a produção de alimentos (18,4% de toda a produção de CO2).
Sinceramente, e antecipando já a luta contra as alterações climáticas como tema de um artigo posterior, a “verdade” sobre este tema é algo muito mais amplo e complexo com ligações e processos simbióticos e de interdependência com imensos outros temas e actividades humanas, e fundamentalmente com o número de seres humanos que preenchem a um ritmo alucinante este “pale blue dot”.
Se calhar a “verdade” enquanto coisa ampla e complexa está fora do alcance destes activistas, ou então estes estão apenas preocupados com o seu cantinho do mundo, a fazer micromanagement dos pneus dos “sugadores de gasolina”, os SUV e veículos de tracção às 4 rodas, que ao fim e ao cabo, são na sua maioria veículos a gasóleo.
Mas a verdade sobre a verdade é que a verdade ensina-se, não se impõe.