Aprendemos, desde cedo, que é preciso sofrer para alcançar os nossos objetivos e concentrarmo-nos neles, mesmo que esse percurso nos conduza à anulação. Quando estamos em guerra connosco, continuamos a caminhar em direção a essas metas que definimos como prioritárias para a nossa vida.
Será que queremos viver em piloto automático?
O clube dos zombies funcionais
Freud e Jung foram pioneiros ao reconhecerem o conflito como uma parte central da estruturação da psique. Para estes dois pensadores, estar em guerra connosco e com os outros não é algo a evitar. Aliás, essa guerra revela-se fundamental para nos tornarmos mais fortes. Por que motivo, então, afivelamos um sorriso enquanto nos apetece cerrar os dentes?
A noção de máscara social, algo a que recorremos para esconder o nosso eu, surgiu pela primeira vez na obra Black Skin, White Masks por Frantz Fanon em 1957.
Este autor centrou a pesquisa que realizou na forma como alguns afro-americanos forjavam comportamentos para serem aceites com mais facilidade no contexto das relações interraciais.
Friesen (1969) e Paul Ekman (1972) pensaram no ato de mascarar-nos socialmente como uma forma de esconder o nojo, uma emoção primária, e substituí-la por outra emoção mais agradável para aqueles que nos rodeiam.
Aprendemos a lidar com clientes que “têm sempre razão”, a “dizer sempre que sim ao chefe” e a inundar o mundo de “mentirinhas piedosas”. Investimos em estratégias de marketing e de relacionamento assentes em máscaras. Por vezes, assumimos o papel dessas máscaras de tal forma que não conseguimos “descolar” dele, como sucedia a Jim Carrey na interpretação que fez d’”A máscara”.
Confundir a utilidade de uma máscara social com o nosso propósito de vida, sugere-nos a escola somática, resulta em doença. Não nascemos para ser cuidadores, pais, irmãos, escritores, profissionais, filhos. Esses são os papéis que somos convidados a desempenhar. Nascemos para ser nós e não precisamos de todos os feitos que anunciamos para sermos quem somos. Basta-nos existir para termos direito a sermos respeitados exatamente como somos.
Somos livres de questionar a habilidade das escolas de marketing digital em nos fazer confundir o que fazemos e comunicamos com o que somos. Ninguém é mais ou menos pessoa por fazer mais ou menos dinheiro. Afastemo-nos dos clubes de zombies funcionais, cujo lema é “aguentar”, “fingir até acontecer” e “vamos conseguir”.
Como continuar?
Quando estamos num momento de crise, somos forçados a transformar-nos e a abandonar situações e pessoas que dávamos como garantidas, mas que não acompanham o nosso crescimento. Procuramos orientações em todo o lado, menos em quem é mais afetado pelas nossas decisões: o nosso ser. É possível prosseguirmos a nossa vida sem tentarmos reprimir ou suprimir a guerra dentro de nós. Talvez o gesto essencial resida em interrogar-nos sobre aquilo de que precisamos agora. Apenas aquilo de que precisamos, não o que precisamos de ter, fazer ou fingir ser para alcançarmos o nosso objetivo (esse que, tantas vezes, resulta da projeção do sonho de outra pessoa e da nossa necessidade de agradar a essa pessoa ou ao coletivo).
Podemos escutar-nos e consultar quem nos alberga fisicamente. O corpo fala, e ainda não aprendeu a mentir.