Metro cheio, quase a chegar a hora de ponta na cidade de Lisboa. Chegados ao destino, enchemos a estação com a saída em massa. Uns foram para as escadas rolantes, outros desceram pelas que não rolam. Qual deles o mais apressado.
Presto-me a passar parte do meu tempo a observar o outro. Uns apressados. Outros a reclamar, porque “esta merda dos passes mais baratos só trouxe mais pessoas para o metro”. Outros a queixarem-se da azáfama que foi o dia. Pelo caminho, também houve quem se queixasse da vida. Há sempre. Somos naturalmente insatisfeitos.
Por opção, quando estou sozinha, fico sempre para o fim da confusão. Deixo que todos passem, se atropelem, se empurrem, porque o autocarro não espera. E a vida também não.
Na estação, ainda sem chegar às escadas, vi uma pessoa que aparentava estar perdida.
Apressei-me a ir ter com ela. Era um senhor. Tinha o cabelo grisalho e óculos escuros.
Sem reparar em mais nada, perguntei se precisava de alguma orientação e para onde queria ir.
“Ainda bem que chegou, minha senhora. É a primeira vez que estou nesta estação e não sei nem onde estou nem para onde ir. Saí no metro que aqui chegou em último, mas ninguém me ajudou. Eu também não sabia a quem pedir.“
O último metro que ali havia passado, era aquele em que também eu saí. Eu e as outras pessoas todas, concentradíssimas nas suas vidas, umbigos e problemas. Andamos tão absortos em nós mesmos que corremos o risco de nem levantar a cabeça e os olhos para ver além do chão.
Ao virar-se para mim, vi a bengala. O senhor estava com óculos escuros por lhe ter sido ceifada a visão. Acompanhei-o até à clínica onde ia ter uma consulta. Fomos conversando pelo caminho, naturalmente.
“A senhora deve ser muito simpática e ainda por cima cheira bem. Cheira a flores. Já lhe disseram isto?“
Já… Já disseram muitas vezes. Contei-lhe, porém, que era a primeira vez que recebia um elogio assim e agradeci-o.
Descendo o primeiro degrau da escada rolante, contou-me ter perdido a visão há pouco tempo, sem precisar quanto, por ser diabético. Falou-me das vezes em que foi avisado, mas nunca ligou.
“Isto é daquelas coisas que só acontece aos outros, sabe? O problema é que eu sou o outro de alguém e nunca me lembrei disso.“
Enquanto fazíamos o nosso caminho, desabafou ter passado a ver as pessoas de outra forma desde que a visão se perdeu.
“Somos muito egoístas e ninguém trava isto. O metro saiu dali cinco minutos antes da senhora chegar. As únicas coisas que recebi foram empurrões e gente zangada. Ninguém quis saber para onde eu ia. Claro que não tinham que saber, mas se eu visse alguém assim procurava ajudar.“
Fui ouvindo aquilo que me quis contar.
“Está a ver aquele ditado que quis que o pior cego é aquele que não quer ver? É nesse patamar que a nossa sociedade está. Todos veem e quase ninguém quer saber. Isto entristece-me. Estamos a ficar vazios de sentimentos bons.“
Ouvi, concordando, sem tentar não chorar.
Não lhe perguntei o nome, nem disse o meu. Só levei o senhor de um sítio ao outro. Também levei empurrões, enquanto estava de braço dado com ele. E reclamações como se estivesse no trânsito. As pessoas estão zangadas e não é umas com as outras. É dentro delas próprias.
Despedi-me do senhor. Desejei-lhe a maior das felicidades e que a consulta fosse condutora de boas notícias. Abracei-o. Do outro lado: “que seja muito feliz também, senhora das flores, continue a ser a flor nos dias de chuva.“
Virámos costas. Ele feliz por ter chegado à clínica sem se ter magoado. Eu a lacrimejar. “Flor nos dias de chuva”… afinal, tinha razão. Nunca tinha recebido um elogio assim.