Há qualquer coisa de quentinho, de confortável, nos sítios que já conhecemos. Sabemos onde pisar, sabemos a que cheira, sabemos o que esperar, o que podemos encontrar. O mesmo acontece com as pessoas, com as situações, com tantas coisas. Os sorrisos que despertam os nossos, as vozes que nos aquecem por dentro, as frases que as avós vão sempre dizer.
O sabor a casa, o pedir sempre o mesmo prato no restaurante, aquele outfit que sabemos que resulta. O que vulgarmente chamamos a “nossa zona de conforto” está na marca de café que bebemos ao pequeno-almoço todos os dias e nas características que não gostamos em nós, mas que teimamos em não mudar porque “eu fui sempre assim”.
Com os nossos pensamentos não é muito diferente. É difícil mudar a nossa mentalidade, o nosso mindset, porque os pensamentos com que nos regamos, com que nos cultivamos, foram sempre aqueles; já os conhecemos, já sabemos a dança e o caminho que eles vão seguir; sabemos quando estão só de passagem e sabemos quando vão cair em espiral – já pensámos aqueles pensamentos, estamos só a remoê-los.
O passado, o que já vivemos, as coisas que fizemos e dissemos têm, no entanto, uma dicotomia de extremos: tanto nos descansam o peito por já as conhecermos, por sabermos o que sentimos naquela situação ou como podemos reagir se vivermos algo semelhante, como servem para nos martirizarmos e julgarmos por termos feito as coisas de determinada maneira.
O passado visita-nos em diferentes momentos, mas penso que há três situações em que parece que não o conseguimos “sacudir” da nossa cabeça, que não conseguimos evitar esse remoer, por maior que seja a nossa vontade de pensar noutra qualquer coisa:
- quando nos desperta a nossa criança interior, as memórias de infância;
- quando nos ativa um evento traumático, que marcou a nossa mentalidade ou ponto de vista em relação a um assunto;
- quando vamos enfrentar um desafio, arriscar uma coisa nova ou fazer algo pela primeira vez.
Os nossos “eus”
“Se pudesses dizer algo ao teu eu de há 10 anos, o que lhe dirias?” é uma pergunta comum. Quando andamos sós na nossa cabeça, parecemos encontrar facilmente a resposta – não namores com X pessoa, escolhe bem os teus amigos, não percas tempo com a patinagem porque não vai dar em nada, não gastes o dinheiro todo em extensões de cabelo.
Falamos e julgamos esses erros, que agora sabemos que o foram, porque agora já estamos emocionalmente distantes da situação – e porque agora “sabemos melhor” (we know better). Porém, na altura não sabíamos – não éramos tão maduros, tão autoconscientes – fizemos como achámos.
Os nossos eus ficam em conflito: o eu de antigamente, que fez o que sabia, e o eu de agora que sabe que ia dar asneira (porque deu). O conflito torna-se ainda maior quando se trata de uma situação traumática, um game changer como uma discussão massiva, o ter um filho: remoemos ainda mais, repensamos as nossas escolhas, julgamos as nossas palavras.
Porque é que faço isto?
O passado volta para nos assombrar quando estamos na beirinha da calçada, mesmo em frente à passadeira. Sabemos que a passadeira nos leva ao outro lado da rua, onde queremos chegar. Acreditamos que vai ser uma travessia segura – até já vimos outras pessoas a atravessar a estrada, mas aquela lembrança do menino que foi atropelado não nos deixa esticar o pé.
É um mecanismo de medo, de autodefesa, de proteção. A vozinha cá de dentro vai sempre trazer-nos o nosso pretérito perfeito (mesmo que seja muito imperfeito aos nossos olhos) para que não esqueçamos todas as aprendizagens, as feridas e as alegrias da vida.
O engano está em acharmos que somos os únicos a remoer esse passado: não somos!
Face ao passado, só temos duas opções: fugir dele, ou aprender com ele. Qual é que vais escolher hoje?