Modernices antiquadas ou o desespero social…

Sempre que ia à aldeia, tinha que responder a um inquérito. As velhas indagavam, de imediato, sobre o meu estado amoroso-civil: se tinha namorado, se não tinha, quando casava, quando tinha filhos. Era quase uma certificação de normalidade, que sempre achei profundamente desagradável. Recordo um ano em que o meu namorado da altura foi comigo, o que as deixou cheias de esperança, mas no ano seguinte a mesma desabou, concretizada no facto de ainda não ter casado. Ora, que estranheza é essa, gente que namora neste verão, mas no próximo ainda não casou? Que dilemas terão causado tais gravíssimos adiamentos? Até porque já passava dos 20, que horror! Essa ideia fixa de ir para a universidade, ainda vai, mas chegar aos 22 sem ter uma única cria, já é coisa grave.  Eu que pusesse os olhos na Fernanda, que foi casada ilegalmente pelo padre aos 15 anos (e nem sequer estava grávida!), e aos 35 já era avó! Passada a fase do casamento, a questão já era outra: aos 30 sem filhos? Será infértil, coitadinha? A intenção pode ser a melhor, mas pressupõe que há uma lista de pontos a cumprir, com prazo, e que se não o fazes, talvez não tenhas mesmo vocação para gerar família, etc. e tal.

Se bem que associemos estas ideias a pessoas idosas, com espírito conservador, de espaços rurais ou sem grandes visões alternativas do mundo, o que é preocupante é que esta ideia não está assim tão em extinção como eu esperaria…No mundo das redes sociais, esta ideia está presente, muitas vezes de forma óbvia, outras vezes mesclada em falsas considerações ou respeito. Sou da opinião que as redes sociais são tal e qual o espelho da realidade, e não é a sua existência que cria a perversão de valores. O que permite é uma expansão da ausência dos mesmos, na impessoalidade e na certeza de uma possibilidade de bloqueio por vezes necessário.

Esta questão é óbvia em termos do estado civil. Afinal, somos todos tão modernos, mas estas ideias da definição de alguém pelo seu estado civil continua de pedra e cal, sejam quais forem os objectivos. As noções que exponho abaixo, peço desculpa aos perfeccionistas sociológicos, não são um estudo amostral, com curva de distribuição de normalidade, até porque isso é coisa que não existe neste assunto. São impressões de senso comum, alguns pessoais, outras situações que partilharam comigo.

1. Se o estado civil de casado é explícito:

Neste caso coexistem vários tipos de pessoas, ou pelo menos pessoas em diferentes níveis de entendimento. Há os que demonstram claramente a sua vida familiar, na naturalidade e na paz. Há os que o usam para expressamente manifestar a posse sobre o outro, dissuadindo eventuais tentativas e conquistas por terceiros e, com fotos familiares que muitas vezes são pintura fina sobre parede sem sustento. E há ainda aqueles que, extenuados de ser abordados por pseudo galãs, optam pela tabuleta, como o mercado imobiliário, numa clara mensagem de: deixem-me me paz sff. Se bem que ainda assim, essa bandeira nem sempre é entendida como limite para o engate, sendo que já me foi justificado que as casadas são as melhores, porque no fim do dia vão para casa e não exigem romance. A mesma lógica para os divorciados com filhos. Se pensaram que a referência a um filho é dissuasor a engatatões, desenganem-se, só querem mesmo é dar umas voltinhas, e à noite há banhos e jantares para dar. Ou então, a contrario, são procurados pelos solteirões de longo curso (como os desempregados de longa data…), que querem rapidamente incorporar uma família já no grau de filhos existentes. No prazo de um mês se puder ser. Assustador, de qualquer forma.

2. Se não há qualquer estado civil:

Nesta situação estão também englobadas diversas atitudes: uns não vêm necessidade de expor a sua intimidade, não percebendo a que se destina.  Outros não sabem muito bem em que estado se encontram, ou é tão flutuante que obrigava a uma constante alteração. Outros ainda evitam colocar um estado que não casado, por se sentirem expostos a assédios fortuitos, que leem naquela declaração a disponibilidade amorosa. A ausência de casado, excepto para aqueles que procuram uma leveza emocional ou um casamento em 3 semanas, é o isco para a imaginação delirante.  É uma autêntica abertura da caça aos gambozinos.

No outro dia, alguém argumentava da seguinte forma: “Ora, se não tens o perfil definido como casada, posso tentar, não? Se fosse visível, eu não tentaria, que sou muito respeitador.” Engraçado que o moço em questão tinha estado civil noivo, mas era claramente muito respeitador das mulheres casadas que tentava abordar, casadas é que não pode ser. Ora, somos todos adultos e ser casado nem sempre é manifesta indisponibilidade, mas isso fica para outra ocasião….

Ora, uma pessoa pode ser solteira, viúva, divorciada, o que seja, e isso não quer dizer que esteja receptiva a uma relação em geral, ou ao ridículo galã em particular. Pode não querer ninguém, por razões várias, ou não ver qualquer interesse no espécimen em questão, ou simplesmente não estar disponível. E obviamente, não tem que ser massacrada por pessoas que buscam, a ferro e fogo, um parceiro. Um pouco como os bons trabalhadores, que habitualmente são premiados com mais trabalho, as pessoas interessantes têm este estigma adicional: “ora, tens que me aturar porque te acho muito apelativa. E não te queixes, que é sinal que és bonita”. E eu, quase que me sinto culpada por ser tão pouco tolerante, afinal não é diferente do cuidado da avó que diz: “não quero morrer sem te ver arrumadinha”, leia-se casada. Gente de generosidade extrema sobre a solidão conjugal…

Outra classe a destacar são os desesperados, aqueles que ligam de imediato, usando-se do Messenger, alguns umas sete vezes consecutivas…. Ora, necessitam que se lhes desligue a chamada tantas vezes para perceberem que são inconvenientes? Pode-se estar no médico, no trabalho, na escola, ou pode-se ( o que é quase sempre…) simplesmente não querer atender….

Depois há o requinte. O que toda a gente espera, ansiosamente, é uma mensagem dum charmoso nestes termos: “oi / keres?” Não sei o que ele queria, mas ocorreu-me qualquer coisa como: “kero que me saias da frente”.  De facto, custa-me a krer….

Estas situações são transversais a géneros, idades, belezas, feiúras, que como diz um amigo meu, há mercado para tudo. O que me choca profundamente é a presunção da disponibilidade alheia. O que me ofende é achar que é legítimo incomodar terceiros que nada fizeram para apelar a tais conversações, a maior parte das vezes rudes e desadequadas. Pior, quase nos fazem crer (ou será krer?) que devemos ser gratos por ser massacrados com mensagens, propostas indecentes ou simplesmente gente chata. Fale-se na solidão, que a há, mas isto é muito mais do que isso, é como se alguém tivesse a obrigação de corresponder a tais intentos. Como na vida real, afinal é preciso avaliar da disponibilidade do outro. E respeitá-la.

“Fim de semana chegando e o coitado tá no osso

Mas acaba de encontrar a solução
Coloca um caderninho no bolso
Apanha umas fichas e corre prum orelhão
É o seu velho caderninho de telefone
Com o nome e o número de um monte de mulher
E ele vai ligar pra todas
Até conseguir chamar uma gata pra sair e dar um rolé”

2345Meia78,

Gabriel o Pensador

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