A noite do dia anterior tinha-se composto de todos os ruídos e de todas as cores que se levantavam pela cidade. As nuvens negras lembravam deuses irados. A chuva caía zangada. Só o bafo mostrava que ainda era Verão. O dia tinha passado na escuridão e a noite só chegara por exigência do relógio. Tinha sido um dia estranho.
Entre a agitação das buzinas, das luzes, dos passos, estava ela. Um ponto branco em slowmotion no meio de um fastforward de gente. O vestido tinha lama na bainha, era uma tela de um pintor desesperado. Parecia que ela e o vestido tinham crescido directamente de uma poça de lama fresca, ressuscitados por uma vontade qualquer. Ela agitava o véu de tule por cima da cabeça, à frente da cara; agitava para o vento, para o nada, para o que só ela conhecia. Entre as sombras era possível ver um esboço da cara dela, e, se se olhasse com interesse, poder-se-ia até inventar um esboço do que ela costumava ser. Ela não dizia nada, de boca cosida. Não dizia nada, de olhos vazios. Chamavam-na de “Noiva Louca”. Os guarda-chuvas e gabardinas passavam por ela e ignoravam os seus movimentos de marioneta – as pessoas com aquela mania parva de temer a loucura.
Quando a noite acalmou e se cerrou, na rua sozinha só sobrava ela. O barulho estava longe, no tempo e no espaço. As luzes pareciam mais fortes, holofotes que a acusavam. O véu quieto, arrastado no chão cujo. Os olhos baixos numa exaustão desconhecida. A Noiva Louca, que nunca tinha sido noiva. Ninguém conhecia a sua história, nem se interessava; era só uma louca solitária vestida de branco. Os movimentos tinham parado com a ausência de público – eram só um teatro que ela sentia chegar-lhe ao corpo quando o caos a encontrava, quando ela precisava de avisar as pessoas de tudo aquilo que ela própria não conhecia mas sabia. Sabia por intuição, como sabemos os sentimentos que não conseguimos nomear. Tinha de avisar sobre tudo, sem nunca conseguir que a olhassem.
Longe da confusão, ela sentou-se no passeio molhado. Se não fosse louca, estaria desiludida. Se não fosse louca, já teria desistido. Talvez a loucura fosse só uma sensatez diferente. Sentada no seu próprio reflexo, percebeu que era no chão que estava sempre tudo. Estavam os passos do passado, as folhas mortas, as gotas de chuva rotas, as palavras ditas, os pensamentos escondidos, os olhos incompreendidos. Estava principalmente o reflexo do mundo. Foi no chão que ela também viu o reflexo do que nunca foi, e que entendeu que a cada segundo passava o que já nunca voltaria a ser. Nunca. Nada do que tinha sido voltaria a ser. Mas escolheu não matutar mais nisso. Era sempre no chão que encontrava um pouco de lucidez. Só um pouco. Nem ela queria lucidez a mais – não tinha sido por isso que se tinha rendido à loucura?