De há uns anos a esta parte, tenho por hábito ir almoçar, num dia certo, a um restaurante que passou a ser uma casa de família. Se de início havia todo um leque de formalidades a serem cumpridas, agora, com o passar dos anos, tudo isso ficou de lado e agora é uma amizade que por ali se aproveita.
Certas comidas são feitas com tanto amor e carinho que se ouve com regularidade pedidos inusitados, como bitoque de cozido à portuguesa. Pratos confeccionados, personalizados, repletos de boa vontade, chegam à mesa dos clientes. E, tal como eu, outros clientes passaram a amigos da casa e até se juntam mesas para que o almoço seja aproveitado em rede. Assim nascem ideias e relações que podem ser duradouras.
A pandemia veio alterar os ritmos de vidas de muitos e estes comerciantes foram dos mais prejudicados. Uma casa pequena que tem um núcleo próximo de clientes, sente a sua falta e, sendo cumpridores de todas as regras e legislações, certamente que tiveram prejuízos dos grandes. Contudo souberam como se reinventar e assim que foi possível voltar a fornecer as refeições, com o mesmo dom de colocar pedaços de amor no arroz ou nas batatas, que voltou à carga.
O melhor foi quando se regressou ao local para comer em mesas que, mesmo afastadas, permitiam o retomar de uma vida que todos desejavam. A parte mais agradável foi a esplanada e assim poder usufruir de um tempo de amena e alegre cavaqueira com quem se sentava mais próximo. Apesar de haver ainda algumas caras desconfiadas, que nunca acabará, as dos costume mostravam o sorriso costumeiro e a vida fluía como um rio tranquilo apesar de ter pedras que não se deixam rolar.
Foi por volta desta época que surgiu um sujeito alto e magro, tal e qual uma figura de banda desenhada, um pouco curvado, com roupas escuras, mas limpas, que passeava uma cadelinha mirrada. Primeiro, pensei que era um desses homens que se está a tentar encontrar, mas rapidamente entendi que aquela cabeça pouco dava e, por isso, o encontro místico estava fora de questão.
Muito delicadamente abordou-me e perguntou se não lhe podia pagar um café. Tive todo o gosto em o fazer e ele, depois de agradecer correctamente, pegou no copo e foi à sua vida. A cadelinha, muito alegre, parecia sorrir a agradecer pela dádiva ao dono. Aqui a luz acendeu-se e o homem passou a ser de todos os que almoçavam ou gravitavam naquela casa. Chama-se António e, em língua bem popular, não tem os alqueires bem medidos, ou aferidos.
Depois do café, que continua a pedir com insistência, veio o pedido do cigarro. “Oh, Chefe, pode dar-me um cigarro?” Contudo, a solicitação não é feita a mim, que sou mulher, mas, sim, a um homem. Logo aqui está espelhada a educação que teve. Não que seja errada, que continua polido e sensível, mas o homem é que fuma e a mulher não. Acontece que por ali é o contrário e, num ápice, a sua alma gémea chegou. Uma sujeita ainda nova, com ar desmazelado, com o cabelo a pedir desculpa à escova e tratamentos, é viciada em tabaco e, tal como se diz, parece uma chaminé.
Há certas expressões que me irritam e esta do “Oh, Chefe” tira-me do sério, mas atendendo a quem a pronuncia, pouco pode alterar. O homem é pacífico e, na verdade, o que precisa é de atenção. Entre ele e a tal rapariga, que já está pejada de cabelos brancos, tal como ele, estabeleceu-se um laço e agora a troca é de tabaco que, em boa das verdades, empesta o ambiente. Contudo a tal ligação está feita. Ela, que não é muito certa, afirma que ele é doido. É assim, estamos todos muito bem em termos mental.
Com o passar do tempo as restrições foram abrandando e mais pessoas se juntam para comer pois retomaram as suas actividades fora de casa. Ele, invariavelmente, caminha com a cadelinha pela trela e passa pela esplanada com o seu passo lento e estranho. Dir-se-ia que está morto pois os olhos não reflectem qualquer tipo de luz. Mais curvado, com a cadelita mais magra, mas sempre alegre e simpática, distribuindo sorrisos em busca de mimos, lá vai na sua tarefa de mendigar um café e um cigarro. Nunca lhe ouvi pedir uma sopa ou qualquer outro prato. Apenas café e um cigarro.
Nada sei sobre o homem, mas percebe-se que cada vez há mais gente que não passou da adolescência prolongada, que têm problemas mentais graves e são tão assustadores pois vivem em mundos onde só podem sobreviver se houver quem lhes dê a mão. São muitos, mais e mais e a fila fica maior a cada dia que passa. Há dias em que o tal homem anda, ou melhor, deambula pela rua sem rumo e, sempre educado, pede um cigarro ou 50 cêntimos para tomar um café. Não sei onde mora, mas quem o cuida assegura-se de que tem o básico pois está limpo e vestido. Por fora. Por dentro deve ser uma miséria das franciscanas e de difícil solução.
Num outro local, onde vou comprar pão diariamente, há uma senhora que se especializou em corte e costura. Quer isto dizer que todos os que entram são uns malvestidos e elas umas oferecidas e vendidas. Eles, com nome grande e chulos da mãe, nada fazem a não ser viver às expensas das mães e elas, de certeza, que andam a caçar meninos desprevenidos e fofos das suas ricas mãezinhas, para ser simpática. Um doce de criatura, como se percebe.
Um deste dias, a dita avaliadora de carácteres, contava que o filhinho tinha voltado para casa e que ela, a gaja, nem lhe tinha pedido para ficar. Para que o menino não ficasse triste, comprou-lhe um popó que ele fazia o favor de deixar estacionado em segunda fila, atrapalhando a passagem do autocarro. Nas suas costas, soube-se que o rapaz, homem de mais de 40 anos, vivia pendurado na tal sujeita que o colocou a andar. Não trabalhava e exigia. Recebeu uns patins.
Chorosa, a mãe do abandonado, lamentava a pouca sorte do seu menino que precisava de dormir mais de dez horas para estar bem. E como estava abalado. O motorista da carreira era um bruto que o carrinho não incomodava. Gente sem sentimentos é o que são. Elas não prestam e eles são as vítimas. É curioso o volte face que as coisas levam. Não sei se daqui a uns tempos irá pedir para um café ou um cigarro, mas, por ora, a mamã cuida dele. E talvez o outro homem, o do café e do cigarro, tenha uma mãe que o ama tanto que permitiu que não precisasse de crescer.