Estou há dias pensando em como conversar com alguém sobre isso sem parecer que estou “chorando pitangas” [i], mas não sei bem como foi minha chegada em Portugal, porque eu estava em fuga do Brasil. Fuga do que ainda nem conseguia nominar, o país que em quatro anos, ou melhor, que em meses tornou-se truculento. Eu saí do Brasil como um vendaval, antes de Bolsonaro ser eleito, antes de todos os 700mil brasileiros serem mortos por um vírus desgraçado e seu chefe de estado declarar ser apenas uma gripezinha. Eu saí com óculos coloridos do amor da cidade que eu amo, da rotina de lugares afetivos, dos trabalhos garantidos do audiovisual, direto para Vila do Conde, perto da cidade do Porto, para saber que teria de ser torcedora do Futebol Clube do Porto, que cada expressão idiomática minha seria de uma risota sem fim, que não existiria mais o telefone bombando a mil ou o boteco da escadaria Selarón pós trampo, pós apresentação da faculdade ou porque queríamos beber umas Originais.
Eu via a vida em rosa, um namorado/marido que conhecia há mais de dez anos no final daquelas horas todas de voo. Uma promessa de vida em meu coração. Eu sentia aquele misto de esperança e folga que todo carioca tem. O andar de havaianas não importa o dress code, pois já tinha garantido família, com cunhadas, sobrinhas, sossego do trânsito infernal, a perspetiva de ter um filho com um homem que seria um pai de verdade, estar longe do buraco para onde meu país estava indo para onde as pessoas do meu país estavam entrando, com seus discursos de ódio, seu lixo sem norte exposto nas redes sociais que adoecia a todos.
Com o amor operando e inebriando meus sentidos parecia que os choques culturais eram blindados. Se existia algum choque cultural, estava submerso pela minha inebriante ingenuidade apaixonada. As perguntas e frases mais duras que me atravessavam vindas dos portugueses que fui conhecendo não me atingiam, passavam ao largo. Quando ficava demasiado pesado, minha forma de confronto não era confronto era permanecer calada e colocar aquele misto de raiva e tristeza, apertando o autoclismo, ou chorando muito sozinha ou nos braços do meu marido, que muitas horas me defendia por eu não conseguir entender ainda as convenções sociais deste novo lugar e para não me ver apertando mais uma vez o autoclismo na madrugada.
Não entender os tantos “nãos” dados como resposta para minha cede eterna de movimento sempre foi o choque cultural mais palpável. Perceber que no Brasil, quando saímos do boteco com uma ideia que conceberíamos e que haveria barreiras, mas para nós o não é garantido, irmão! Era um impulso. Aqui era broche mal feito, pois o não faz parte da alma portuguesa e não da margem para o sim existir no coletivo. Isso foi frustrante.
Depois disso veio nossa filha e eu acreditei: vai melhorar! Comtudo, veio a pandemia e eu pensei: vamos sair pessoas melhores dessa bagaceira toda! E o que ocorreu? Foi que tudo para mim, piorou. Comecei a sentir mais o racismo, a xenofobia e esse marasmo português em perseguir sonhos. Mas o que doeu e me fez aterrar no Portugal real foi: “volta para tua terra brasileira de merda!”.
De repente, me pego pensando que esse texto, deveria ser outro, que deveria ser engraçado e não tão confessional… podia também ser cómico, como no filme da Carla Camurati e de uma forma reversa fazer como dona Carlota Joaquina: “desta terra não quero nem o pó!”, mas, cá nesta terra cumpri parte do meu ideal, criei raízes de que não me posso desfazer e nem quero. Pois sei, que de havaianas no dress code não existe o impossível.
Acredito que agora, cinco anos completos, depois de estar saindo daquele estado de felicidade que alcanço todas as vezes que entro em um avião e passo horas vendo nuvens e se apanho chuva elas escorrem na janela na horizontal, o telefone não funciona e tenho o infinito de possibilidades aberto a minha frente, nesse momento consigo pensar no que me trouxe para além do amor. No entanto, meu voo de trinta e uma horas levou cinco anos para chegar porque só agora entendo a minha condição de imigrante. Quem sabe em um próximo texto eu já consiga falar com maior clareza do que foi deixar o Brasil e vir para Portugal.
[i] “Segundo o folclorista Câmara Cascudo, o termo “chorar as pitangas” foi cunhado por meio desse contato entre culturas diferentes. No caso, o “sangue” que compunha a expressão lusitana foi substituído por “pitanga”, que significa “vermelho” na língua tupi. Dessa forma, o termo acabou fazendo alusão à uma lamentação extensa, onde o reclamante passaria chorando até ficar com seus olhos avermelhados.
Foi assim que uma nova expressão foi desenhada para reclamar das várias intempéries ocorridas durante o longo e difícil processo de dominação do território brasileiro. Não se limitando ao passado colonial, ainda temos muitas pessoas que admitem “chorar suas pitangas” quando algum tipo de contratempo sobrevém.”
Veja mais sobre origem da expressão “chorar as pitangas” aqui.