A Trégua

Sexta-feira 22 de Fevereiro

Quando me reformar, creio que deixarei de escrever este diário porque então irão, sem dúvida, passar-se muito menos coisas comigo do que agora e vai revelar-se insuportável sentir-me tão vazio e deixar disso uma prova escrita.

Falávamos sobre o que faríamos se ganhássemos o Euromilhões: eu disse logo que no dia seguinte iria ao escritório soltar umas “verdades”. Trocávamos ideias depois da aula como tantas vezes fazíamos e o Javier – o meu professor de espanhol – falou-me numa cena de um filme argentino (A Trégua) em que, num escritório de contabilidade onde os empregados apostavam em sociedade, resolvem pregar uma partida a um deles anunciando que haviam ganho a lotaria: com a excitação, o homem dirige-se ao gabinete do director e, antes que os companheiros conseguissem evitar o desastre depois de perceberem o que iria acontecer, ele descarrega as frustrações acumuladas durante anos: é despedido; e é-lhe anunciado que afinal não haviam ganho nada… fora tudo uma brincadeira.

Não consigo descortinar o porquê de esta cena ter despoletado em mim a curiosidade para pesquisar o filme mas a busca convergia sempre para o livro A Trégua, do poeta uruguaio Mario Benedetti.

Comprei-o e li-o com um interesse crescente, como acontece com histórias de pessoas normais que vivem acontecimentos normais amarrados a vidas normais. Pensava eu… é na fuga à normalidade e na primorosa e sensível escrita de Benedetti que reside a força desta história.

Domingo 2 de Junho

O tempo foge. Às vezes, penso que deveria viver apressado, tirar o máximo partido destes anos que restam. Hoje em dia, qualquer pessoa me pode dizer, depois de esquadrinhar as minhas rugas: «Mas se o senhor ainda é um homem novo». Ainda. Quantos anos me restam de «aindas»? Penso nisso e fico com pressa, tenho a angustiante sensação de que a vida me está a escapar, (…)

Montevideu, 1959. Martin Santomé, quarenta e nove anos, viúvo há vinte, conta os dias para a reforma num trabalho de que não gosta num escritório de contabilidade. Desiludido, tem dificuldade em relacionar-se com os três filhos e vai compensando o que a vida deixou de lhe dar com um ou outro encontro ocasional. Quando Laura Avellaneda, vinte e quatro anos, entra para o escritório, Martin não se enamora de imediato, mas a convivência e a solidão concorrem para os aproximar. E apaixonam-se…

A partir daqui, são as preocupações de Santomé que acompanhamos (é o seu diário que lemos): a idade e a diferença de idades, o futuro da relação, a preocupação em ser deixado… de um jeito “lúcido-pessimista”, porque o seu pessimismo é muito lúcido, as suas preocupações (ainda que antecipadas) muito lógicas, as suas vidas muito diferentes.

Segunda-feira 12 de Agosto

Ontem à tarde estávamos sentados junto da mesa. Não estávamos a fazer coisa alguma, nem sequer a falar. Eu tinha a minha mão pousada sobre um cinzeiro sem cinza. Estávamos tristes: era isso que estávamos, tristes. Mas era uma tristeza doce, quase uma paz. Ela estava a olhar para mim e de repente mexeu os lábios para dizer duas palavras. Disse «Amo-te». Então apercebi-me de que era a primeira vez que mo dizia, mais ainda: que era a primeira vez que o dizia a alguém.

Triste e bonita reflexão sobre a vida, o amor, a desilusão e a possibilidade de irmos sempre a tempo de apanhar o comboio que nos conduz à maravilhosa incerteza da esperança.

Em 1995, no livro El Amor, las Mujeres y la Vida (de Benedetti), Avellaneda escreveu um poema para Santomé – Ultima Noción de Laura. A ler obrigatoriamente por quem leu A Trégua, mas obrigatoriamente depois de ler A Trégua.

Segunda-feira 3 de Fevereiro

Ela dava-me a mão e não era preciso mais nada. Bastava-me para sentir que era bem recebido. Mais do que beijá-la, mais do que deitarmo-nos juntos, mais do que qualquer outra coisa, ela dava-me a mão e isso era amor.

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