Debaixo de algum céu

Debaixo de algum céu ganhou o prémio Leya 2012. E eu consigo perceber porquê. É, acima de tudo, um livro mesmo muito bonito. Bonito ao estilo dos livros dos autores portugueses mais jovens e consagrados que eu tanto gosto – José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe – que não se preocupam só com boas e novas histórias, nem a forma de contá-las. Preocupam-se com as palavras exactas que vão usar para nos contar algo que pode ser quotidiano. Tornam o quotidiano em cores.

Não me admira que Nuno Camarneiro tenha ganho, mesmo nada.

Comprei-o com a curiosidade de saber o que faz um prémio Leya. Quando acabei, fiquei convencida de que eram as palavras, acima de qualquer outra coisa. Não sei se será o caso de todos os vencedores deste prémio, imagino que alguns terão outro valor pela história e pesquisa, por isso, provavelmente, fiquei sem saber na mesma. No entanto, no caso de Nuno Camarneiro, a história é simples, quotidiana, mas tão bem escrita que torna o livro irresistível. Depois de o ler, percebi numa entrevista que tinha mesmo a ver com o purgatório (não tinha só sido uma palavra usada à toa na sinopse. “Sim”, pensei. “Sim, sem dúvida”). Fez ainda mais sentido. Deu ainda mais sentido.

Quanto falo de “bonito” e de palavras, não pretendo desvalorizar a história. Não, não mesmo. Embora seja uma história de vidas normais, de nada de super-extraordinária (embora os acontecimentos e as pessoas sejam especiais à sua maneira), é muito interessante, bem pensada e construída. Contudo, o que hei-de fazer se fiquei apaixonada pelas palavras que o autor escolhe para as imagens que cria? As imagens e a simplicidade. As frases e os pensamentos. Parecem alguns filmes europeus, ou portugueses em particular – pela história até pode parecer aborrecido, lento, simples, escuro, mas é mais profundo do que isso. Como se um filme olhasse para dentro de nós e nos conhecesse bem.

DebaixoDeAlgumCeu_1O livro faz-nos seguir, durante uma semana, a vida das pessoas que vivem num prédio. Vizinhos que mal se conhecem. Histórias que só vivem dentro deles. O medo, que vive naquelas paredes. E, de repente, mesmo na altura do Natal, o prédio fica sem luz. E parece que é na escuridão que os segredos lutam por sair, que as histórias batalham para conseguir uma conclusão. Vamos descobrindo mistérios que quase adivinhávamos nas entrelinhas, vamos seguindo as vidas e os pensamentos daquelas pessoas que podem ser as nossas vizinhas. Que podemos ser nós próprios. Ou que até fomos, no passado – ou seremos, no futuro. E, juntamente com as pessoas do prédio, também outras de fora surgem que vão fazer parte delas, que serão parte importante deste purgatório. E aos poucos, a história, que parecia simples, que parecia um dia normal na rotina de alguém, já nos apanhou na sua profundidade, e afinal é mais, muito mais do que pensávamos.

Não sei, não consigo, descrevê-lo de outra forma para além da sua beleza. Para mim, tornou-se irresistível por causa da forma como o autor escolheu escrevê-lo. É isso que faz da história o que ela é, que faz do livro o que ele é. Tão bonito.

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