À Beira do Abismo

NOTA PRÉVIA: O artigo derivou do livro para uma mescla filme-livro. Porque se tornaram inseparáveis.

Não me coíbo de manifestar gratidão aos programadores do Canal 2 quando, numa altura em que a internet dava os primeiros passos e comprar VHSs originais saía caro para a mesada de então, alimentaram a minha paixão pelo Cinema em ciclos como ‘No Meu Cinema‘, ‘O Filme da Minha Vida‘ e ‘Cinco Noites, Cinco Filmes‘. Creio que foi no primeiro, da autoria de João Benárd da Costa, que vi À Beira do Abismo, a quinta-essência do filme negro.

Antes das boxes, apps, downloads ou streaming para nos libertar dos horários televisivos (e da pérfida publicidade em intervalos infinitos), o vídeo era tudo aquilo com que podíamos contar para compatibilizar um filme que começava às onze da noite de uma quinta-feira, com o horário de um estudante que dava mais valor ao Cinema do que à Matemática.

No entanto, tinha que esperar que o filme começasse, não fossem baralhar o horário e perder preciosos minutos de fita nalgum serviço noticioso, no Acontece ou com o 70×7.

Foi num sábado à noite que me sentei a ver a adaptação do primeiro romance de Raymond Chandler (e uma das obras-primas de Howard Hawks, de 1946). À Beira do Abismo tinha tudo: perseguições na noite, becos e gabardines, o chapéu de Bogart e o olhar de Bacall, mistério e femme fatale, um argumento intrincado… um argumento tão intrincado que me irritou ao ponto de quase tirar a cassete e arrancar a fita. Julgo ter sido o filme em que mais vezes puxei a fita atrás: os diálogos e personagens surgiam e aceleravam sem me dar tempo de acompanhar. Senti-me burro.

Estranhamente, senti nos dias seguintes ter gostado de um filme do qual captara pouco. Numa tosca pesquisa pela internet, parti em busca de explicações para os hiatos que me haviam escapado, para dar com uma resposta de Chandler, o autor do livro, à pergunta dos argumentistas, William Faulkner e Leigh Brackett: Quem matou determinado personagem? Irritado, Chandler terá ripostado que a resposta estava no livro. Mais tarde, telefonou de volta dizendo que regressou à história e, sem conseguir descobrir o assassino, o mesmo ficaria ao critério de Faulkner e Leigh!

O facto de até os próprios argumentistas terem sido confundidos pelo enredo labiríntico massajou-me o ego: afinal era possível gostar de algo sem perceber porquê (na altura ainda não havia descoberto as paixões da adolescência nem o cinema de Tarkovski).

Completei recentemente a minha vitória: Hawks, o realizador, ao montar a película removeu a cena em que Marlowe – o mítico detective – explica os crimes!

A complexidade de À Beira do Abismo mostrou os proveitos das dores de crescimento: os restantes filmes negros que vi naquela altura constituiram um maravilhoso passeio até Los Angeles das décadas de 30 e 40.

Muitos anos depois, nos 37, comprei no OLX um exemplar desfolhado de À Beira do Abismo, da colecção Vampiro, e Chandler mostrou-me como a escrita consegue ser melhor do que as obras-primas que eu vira no Cinema. Seguiram-se O Imenso Adeus e A Dama do Lago. Como Rubem Fonseca escreveu em O Caso Morel:

Raymond Chandler é melhor do que Dostoiévski, mas ninguém tem coragem de dizer isso.

Ler Chandler é percorrermos a história pelo olhar do icónico detective Philip Marlowe. O que vemos é o que ele testemunha, no seu cinismo, desprendimento e solidão. A atenção faz-se obrigatória, tantos são os personagens que brotam sem aviso, os becos do submundo nocturno para onde somos lançados ou os convites que recebemos para as mansões paradisíacas de Beverly Hills. Se a experiência da leitura de À Beira do Abismo lançou (alguma) luz sobre a adaptação cinematográfica que ficou perdida no final da adolescência, ela não me largou um só dia. Porque interromper o acompanhamento da investigação de Marlowe é suficiente para, tal como no filme, puxar a fita atrás. Ter que reler ad eternum o que não esquecemos e apenas baralhámos, converge para uma obsessão momentânea de arrancar os cabelos.

Em conclusão: ler Chandler é tão prazeroso quanto exigente. Não sei se concordo com Morel pois somente me cruzei uma vez com Dostoievski, mas Chandler é, para alguém como eu, que muito raramente se entusiasma com policiais, um exemplo da mais fina Literatura.

PS: Sobre a história, nem vale a pena começar a desfiar o novelo.

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