O uso de certos termos perde-se no tempo e nem sempre é usado de forma correcta. Quem ouve arraial pensa em festa, mas a polissemia permite ir mais longe. É agora que tudo se pode complicar e o sal está ligado ao arraial. Ou à sua extração e conservação. Ou ainda a estabelecer uma posição física e marcante.
No entanto, não é sobre estes temas, nada disto mencionado que vos quero falar, ou melhor, escrever. É algo muito mais profundo e filosófico para bem se meditar. Um tema carregado de passado com uma herança pesada e perigosa. Cuidado para não se deixarem enlear na teia do amor que descamba em pavor. Ou horror.
Ter nascido mulher é um estigma muito difícil de se carregar. Há toda uma envolvência que leva a caminhadas tortuosas e duras. Século XX e tanto atraso no pensar. Um pecado que fica para sempre. Uma herança pesada e cheia de picos feios e malcheirosos.
Assim que sou nascida, eu e as outras tantas Marias, recebemos logo um título de mãe, dona de casa e ainda de esposa. Nunca de pessoa. Penso que haverá mil e outras milhões a sentir esta tortura social de ser um destino traçado e não uma pessoa.
Então escolhe-se a arca, com um chinês, pobre desgraçado, a carregar uma liteira e a superar montes e vales para chegar a um destino sabe-se lá onde, ao futuro da menina que ainda nem sabe que nasceu. Desgraçada moça.
Começa agora a aventura de encher a caixa de madeira com lençóis, toalhas, panos de loiça, panos do pó, naperons, toalhas de mesa, pegas e muito mais. Um must de parvoeira. Calha que ficam amarelos, encardidos, bafientos e pior, odiados.
Em vez de ser a menina que corre nos verdes prados, é a solteirona cafona e encalhada que acumula coisas que nunca irá usar. Tudo fora do contexto e sem sentido. Lençóis que não servem em camas de tempos depois e tecidos que soltam faíscas até doer.
Fazer estas compras antecipadamente não é um presente, mas sim um castigo que retira toda a alegria de se escolher com carinho e cuidado, o que se quer usar no lar. Acreditem que sei o que digo. Ainda tenho “prendas” por usar.
Façamos um rescaldo do inútil. Lençóis que estão desirmanados e se recusam a deitar nas camas, toalhas que têm fibras tão rijas e feitas de frustrações ilimitadas, feias como a noite de medo, panos de loiça que arriscam partir os pratos de tão duros que são e pegas que, de falta de uso, deixam tudo cair.
Enfim, toda uma panóplia de inutilidades que de domésticas pouco possuem. Servem para se parodiar com a falta de gosto e de sentido prático. Algumas mudaram de nome e agora são vintage, sendo muito apreciadas, mas não usadas. Apenas show e nada mais.
Permito-me falar agora de outro tipo de bens, as toalhitas especiais. Pequenos retalhos de forma rectangular, que seriam para ficar na gaveta da mesa de cabeceira. Já tenho a vossa digna atenção? Sabem do que falo, bela palavra, ou é preciso fazer um desenho?
É isso, material para ser usado em segredo e após o acto. Recolhia fluídos e odores e muita má vontade de algumas partes. Felizmente que outras sabiam como se divertir. Toalha. Pois. É isso mesmo. Assim, com paninhos quentes é que não se falava de sexo e as crianças eram entregues pelas cegonhas.
E a parafernália de objectos, muito estranhos e até mesmo perigos, de que se desconhecia a função, mas figuravam nestes enxovais? A desculpa estava ligada a célebre frase” pode vir a dar jeito…” Tenho muitos jeitos que me dão vontade de rir.
Acreditem que tenho casa, que vai para muitos anos, sem ter usado tudo. Sim, eu sou uma das clássicas senhoras que se casou, mas, aqui entre nós, estava distraída nesse dia. Sem me dar conta passaram algumas décadas e o doce e natural gozo de escolher como estragar o ambiente doméstico foi-me retirado. Não posso perdoar.
É aqui que entra o arraial, mas não é de festa, antes pelo contrário, é da mais pura tristeza. Não me vou desfazer de peças boas, o que seria um crime, mas não retiro o mesmo prazer de as ter a uso. Seria bem melhor ter escolhido tudo a meu gosto e depois queixar-me que estava doida quando as comprei.
Por outro lado, sempre me posso orgulhar de ter uma imensa parafernália original dos anos 70. Lençóis com girassóis azuis, toalhas com geometrias tipo Vazareli e maquinetas que não faço ideia qual a utilidade, mas está bem, faz parte do sistema de rejeição.
Alguns cães e gatos não apresentam qualquer tipo de reclamação o que prova estar nos ditos conformes. Usam as tais ditas cujas para as multifunções. Haja quem se sinta em pleno com tanto horror mascarado de moda. O certo é que existem e até têm direito a crónica para fazer a respectiva catarse.
Bem, vou ali e já venho e ainda encontro mais alguns objectos de enorme utilidade. É tão grande que a desconheço, mas o que conta é a intenção, certo? Já contei. Muitas vezes. É agora que agradeço?
O que vale é que a mãe tem 90 anos e já nada a incomoda. Ou melhor, vai a caminho dos 91 e deitou fora todos os filtros e chama os bois pelos nomes e agarra nos cornos da vida. Une a família e serve para nos deliciar. Que sorte!