Caminho Inglês de Santiago

Ainda que tenha feito por escrever um diário, a passagem do mesmo a limpo perdeu força: ao terceiro Caminho, a novidade não é a mesma e a experiência é mais forte do que as palavras. Assim, libertei-me da “responsabilidade” que trago há ano e meio de passar a limpo (e eventualmente embelezar) o diário, para deixar as impressões que importaram.

Em Maio de 2021 estávamos na pujança da pandemia: a sairmos do lugar cimeiro do pódio como os piores do mundo, nobre posição que havíamos ocupado entre Janeiro e Fevereiro, fazíamos contas todos os dias para ver se Espanha fechava ou não as fronteiras e, caso o fizesse, o que ainda iriamos a tempo de cancelar. Nada foi cancelado.

O Caminho Inglês é o mais curto dos Caminhos completos de Santiago: 113 kms que correm de Norte para Sul, de Ferrol até Santiago. É um Caminho bonito, com muito verde e uma subidinha filha da puta à saída de Pontedeume, logo no início da segunda etapa. Antes, o contorno da baía de Ferrol mostrou um trajecto chato como a potassa, muito alcatrão e todos os cafés fechados, não só pela pandemia, mas por ser domingo. Partimos às 7:00 e só depois das 11:00 conseguimos encontrar um sítio para comer qualquer coisa! Água suja na chávena do expresso foi o que nos serviram e a Sofia, em arrependimento acelerado por ter acedido a vir na aventura e talvez até por ter escolhido este parceiro de Caminho – “Não fales comigo quando estou assim” – ao que eu obedeci com um silêncio gritante, orelhas caídas e passinhos mais curtos para não cansar.

Tinha razão para maldizer da vida: nunca tinha visto bolhas tão grandes como as que ela fez… na planta do pé, nos dedos, no calcanhar e até de lado! Bolhas com dois ou três centímetros, autênticas crateras que lhe doíam (a ela; a mim traziam-me pena e culpa, mas não doíam!) levando-nos à farmácia, depois de umas peregrinas nos terem emprestado Bepantol, para eu pedir algo para as “pollas”, levando a menina a corrigir-me “para las AMPOLLAS”. “Eso!” respondi.

De resto, o habitual: dores nas costas, pernas, ombros, braços, pescoço e muitos outros sítios, mais proeminentes ou não, mais imagináveis ou não, mas ainda assim o costume: mancar, sempre de chinelos e dormir, madrugar, beber Aquarius, enfardar tortillas e bocadillos, e não ter absolutamente nada mais com que nos preocuparmos, prazos ou horários para cumprir, compromissos a que atender.

Raras vezes faço bolhas, num misto de sorte e juízo (cuidado com as meias e com o calçado) mas tenho a certeza de que se fizesse um décimo das que a Sofia fez, a Caminho Inglês estaria pejado de palavrões, como as migalhas da história de Hansel e Gretel

Por tudo isto, podemos dizer que o Caminho de Santiago, o nosso caminho, foi romântico, mas mesmo, ainda que possa não parecer: foi maravilhoso! Agora, passados dezoito meses, parece mais engraçado (talvez tenha sido essa a razão por que levei tanto tempo a publicar), mas a verdade é que foi uma aventura e tanto, por um Caminho fantástico, semi-deserto naquele tempo estranho onde treinámos a gestão dos silêncios e a ajuda mútua, a partilha da dor e a satisfação da chegada no final de cada etapa, e uma entrada em Santiago tão mais bonita do que aquela avenida escrotal no fim do Caminho Português (os cemitérios e os bosques encantados trazem uma beleza irreal à Caminhada).

Vale a pena tamanha experiência, por tudo o que lá deixamos, mas também por tudo o que aprendemos com quem caminha ao nosso lado.

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