Tiny Pretty Things é uma série produzida e lançada pela Netflix em Dezembro de 2020. Contém 10 episódios de cerca de uma hora e procura retratar as vidas de um grupo de bailarinos/as numa escola privada em Chicago, isto após ter ocorrido uma tentativa de homicídio a uma das alunas-estrela. A temporada consiste em tentar desvendar o mistério por detrás dessa tentativa de homicídio, acompanhando simultaneamente as vicissitudes de vários adolescentes no seu dia-a-dia nessa escola draconiana. Todos procuram atingir o mesmo sonho: tornarem-se profissionais de ballet.
A série, apesar de aludir a várias cidades densamente populadas do planeta, como Paris ou Nova Iorque, reside unicamente numa Chicago que se assemelha mais a uma pequena vila portuguesa: a quantidade de encontros por coincidência, as premonições de que iria encontrar tal personagem em certo lugar, reduzem a terceira cidade mais populosa dos Estados Unidos a três ou quatro quarteirões demasiado pequenos para tanto drama. É caso para dizer que esta Chicago se assemelha a Cuba, não o país, mas a vila alentejana.
Um dos (vários) problemas narrativos da série passa pela sua incapacidade em manter uma dinâmica consistente entre os vários fios da história. Não há um entrelaçamento equilibrado: em vez de nos depararmos com micronarrativas que ganham protagonismo e ajudam a avançar a narrativa principal de maneira orgânica, o que temos é uma desarmoniosa atribuição de protagonismo a vários microdramas que nos levam a perder o fio à meada, muito pelo facto de não ajudarem a progressão da narrativa ou então de a avançarem de um modo descaradamente formulaico. Um desses exemplos é o da aparente protagonista, Neveah Stroyer, em que, após ter resolvido o problema do seu passado com a sua mãe a meio da temporada, acaba por se secundarizar no contexto de toda a história tornando-se uma personagem-tópico, na qual só existe no mundo da história para avançar a trama em determinados momentos ou trazer certos tópicos para discussão.
Isso no papel não teria em si nenhum problema, pois é perfeitamente possível (e isso está comprovado em séries com múltiplos protagonistas, como Game of Thrones) que é possível avançar uma narrativa distribuída em inúmeros ramos equilibradamente (pelo menos durante as primeiras temporadas). Contudo, o problema das personagens em Tiny Pretty Things é o de que, quando essas personagens não estão debaixo do holofote, elas como que sofrem de uma quebra súbita de personalidade, escondendo-se por detrás de tropos que só ajudam a avançar com a narrativa em vez de estar ao serviço da própria personagem, isto é, de ajudar no aprofundamento do seu carácter, de tornar a personagem verosímil no contexto daquele mundo. Por exemplo, o tropo de haver sucessivos episódios onde personagens diferentes sofrem um pesadelo que os perturba o suficiente para os fazer agir é sinal de falta de criatividade do argumentista em levar as suas personagens a fazer coisas que o argumentista pretende; por outras palavras, este problema seria facilmente solucionável se alguém, na mesa dos argumentistas, tivesse se lembrado de que existem pessoas que não dão muita importância a pesadelos, pessoas que dão importância mas que não reagem, ou até pessoas que não percebem de pesadelos e não conseguem (ou querem) relacioná-los com a sua vida.
O que não se pode descurar é a performance dos actores. Os próprios realizaram todas as sequências de dança que, sem sombra de dúvida, contêm um nível elevado de exigência. Nota-se que a realização procura fazer o maior uso possível de tais skills, procurando inserir em tantas circunstâncias quanto possíveis tal atributo que, por mais positivo que seja, se utilizado com demasiada frequência, acaba por se tornar saturante e perder a sua capacidade de deslumbramento. É esse o outro ponto negativo: o recurso não envergonhado a fórmulas e padrões pré-estabelecidos ad nauseam, no que toca às personagens e á narrativa. O facto de a temporada começar com a tentativa de homicídio de uma aluna e (spoiler alert!) terminar com a suposta morte de um professor de dança perverso e tirânico é em si sinal de que o tipo de drama que irá advir na segunda temporada será idêntico. Não irão fugir do mesmo registo melodramático, de detective amador em busca de resolver um crime num mundo injusto e implacável como o do ballet.
O background utilizado, de uma escola centenária de ballet com métodos de ensino medievais e cruéis, onde os alunos se juntam para combater o sistema e mudar as estruturas que os afligem é já em si um tropo recorrente de séries adolescentes e de jovens-adultos, e aqui, por mais que a mensagem seja positiva, padece da sua execução escondendo-se, algo ironicamente, numa tradição narrativa já em si estabelecida e imensamente reutilizada. Isto porque é muito frequente as personagens esconderem convenientemente as suas personalidades (ou amplificarem ao ponto de parecer inverosímil) de modo a fazer sobressair alguns comportamentos, opiniões ou atitudes no mínimo incongruentes, mas que ao nível da narrativa se compreendem: tudo para ajudar a narrativa (bem como uma possível agenda) a progredir.
Em suma, a série em si detém alguns pontos a seu favor: as performances de dança são de elevada qualidade; o facto de o background da série residir no ballet é em si uma excelente dinâmica para trazer para o mundo ficcional e serial, e nota-se que há muito “sumo” para se retirar de tal contexto. A questão é a de conseguir, com sucesso, separar o trigo do joio: poderá ser, no futuro, útil distinguir o mundo trágico do ballet de uma série melodramática que usa o background do ballet para contar uma história sentimentalista e hiperbólica, que sem sombra de dúvida, irá atrair e captar a atenção de uma demografia mais jovem.