Quem não se recorda de estudar as figuras de estilo nas aulas de português? Lembram-se das personificações, aquele recurso que estava presente, quando atribuímos uma característica humana a um objeto? Vivemos num período tão curioso, que temos uma autêntica personificação no dia-a-dia, tão banalizada que já não damos, sequer, por ela: temos objetos que, pelas suas características, adquiriram o privilégio de serem chamados inteligentes. São os smartobjetcs.
Desenganem-se se pensam no smartphone, porque o futuro já vai bem mais adiantado. É a Smart TV, que se liga à Internet e permite usufruir de toda uma enorme quantidade de aplicações, incluindo Netflix e Youtube.
É o frigorífico que avisa, quando vão faltar alimentos, ou que dá sugestões de refeições tendo em conta os ingredientes que contém. É a máquina de lavar inteligente que já conhece as nossas preferências e horários e, se temos ginásio no dia seguinte de manhã, sugere que se faça uma máquina com roupa de desporto.
É também o facto de estes objetos comunicarem entre si (incluindo com o nosso smartphone) e reconhecerem instruções dadas pela nossa voz. Estas foram apenas as tendências apresentadas na Consumer Eletronics Show, em Las Vegas, no início do presente ano, e bem sabemos que a tecnologia avança a uma velocidade estonteante.
Não existe a menor dúvida que estes instrumentos vão facilitar em muito a nossa vida, principalmente numa sociedade em que o tempo escasseia ou, pelo menos, parece escassear.
Ora bem, o pressuposto da invenção de todas estas tecnologias é o de que precisamos delas. Precisamos, mesmo?
A bem dizer, todos sabemos que a vida sempre existiu antes desta nova onda de objetos inteligentes. Desde logo, o precisar é uma necessidade relativa. Por um lado, parece, ainda, pairar a ideia de que estes objetos vieram inventar necessidades.
A verdade é que, se há dez anos ninguém precisava de ter Internet na rua para verificar a morada de um escritório, hoje ninguém vive sem isso. E é difícil perceber se a necessidade já lá estava antes e os smartphones são, de facto, uma solução para o problema, ou se a questão nunca se colocou e apareceu uma solução antes sequer de ter surgido um problema.
Pessoalmente, acredito que não existia um problema, mas existia, sim, uma dificuldade. E esta dificuldade fica imediatamente ultrapassada com o facto de ter um smartphone nas minhas mãos. Se, nos anos noventa, quisesse ir a um certo escritório tinha que ir às páginas amarelas e dar com a morada ou ligar para lá para saber a morada, depois procurar essa morada num mapa de Lisboa e levá-lo comigo, ou ter uma boa capacidade visual e de orientação para saber o caminho e ter boca para ir a Roma. Cansados, só de ler? Eu também.
Por outro lado, que notar que o que estes objetos fazem é uma substituição do espaço e processamento do nosso cérebro no que diz respeito às tarefas domésticas. Isto implica termos mais disponibilidade mental para outro tipo de coisas. No ano passado, um estudo publicado na “Neuron“ descreveu a importância de nos esquecermos de certas coisas, na medida em que nos permite poupar espaço no cérebro para o que realmente interessa e, nesta perspetiva, estes objetos podem representar uma excelente ajuda.
Ainda assim das questões mais importantes que também vão surgindo é a de saber quem tem acesso a estas nossas preferências e hábitos que podem ser deduzidos dos nossos eletrodomésticos e como é que estas informações podem ser usadas contra nós, desde o hacker que quer saber quando estamos em casa, à empresa de Marketing.
A nossa Smart TV, nomeadamente através da Netflix, conhece as preferências de todos, mesmo todos, os seus utilizadores. Concretamente no caso da Netflix, as preferências são utilizadas na forma de informação agregada para obter, série após série, mais sucesso e, logo, mais pessoas viciadas em Netflix, roubando-nos mais tempo ainda, aquele tempo que nos queixamos que já não temos à partida, e que justifica o aparecimento de mais e mais objetos inteligentes. Será que precisamos mesmo deles?
Havendo cada vez menos uma distinção clara entre aquilo que nós somos e o que constitui a nossa maneira de ser e esta extensão de nós disseminada pelos vários objetos inteligentes que nos rodeiam, acabamos, por vezes, por sentir que a nossa realidade e a virtual, que supostamente apenas se tocariam, se sobrepõem. É questionável se uma realidade digital, paralela à nossa, era necessária, com tanta coisa boa que há para ver e fazer na física. Em todo o caso, já que criaram uma suplente, mais vale aproveitar o melhor dos dois mundos.
A este propósito importa referir que, mentalmente, o facto de estarmos sempre conectados também tem um impacto, incluindo no que diz respeito ao descanso. Não só existem estudos que comprovam o efeito dos écrans no sono, como em Direito, já se vai falando de um Direito à desconexão, que garante, por exemplo, o Direito de ser deixados em paz, após o período laboral. Isto significa que o nosso chefe não deve mandar-nos mensagens por Whatsapp e, caso o faça, não temos obrigação de ver e responder. Como exercer uma desconexão que é mentalmente desgastante, numa casa em que tudo é inteligente, tudo sugere alguma coisa e tudo comunica e notifica o utilizador, vinte e quatro horas sobre sete dias por semana?
Como em tudo, há que encontrar um equilíbrio. Se a pergunta é se precisamos destes objetos, a resposta é, claramente, que no limite, não precisamos. Contudo, não podemos ignorar as facilidades que nos trazem, até porque não há necessidade de complicar a nossa vida, quando ela pode ser bem mais fácil. Tão pouco podemos, ainda assim, subestimar os impactos negativos que têm na nossa vida. O descanso é um valor vital. Literalmente, porque privação de sono e do descanso, a longo prazo, dão origem a doenças degenerativas do cérebro (ver, por exemplo, o estudo acessível em aqui) e a bem curto prazo afetam negativamente o cortéx pré-frontal, impedindo-nos de tomar decisões nas nossas capacidades mais plenas.
Precisamos destes objetos, mas não tanto quanto precisamos de descansar. Resta esperar que a necessidade destes smart objects nunca se sobreponha a necessidades básicas e, sobretudo, que saibamos retirar o melhor das suas aplicações sem comprometer significativamente a qualidade de vida.