Se há momentos em que sofremos uma travagem brusca, daquelas em que tudo fica no ar, em câmara lenta, no meio do nada, como se estivéssemos no vazio do universo, é naquele momento. Aquele é um verdadeiro acontecimento no que de mais fundo a palavra tem: algo que vem e muda a ordem das coisas para sempre. Pois dali não saímos ilesos e a vida nunca mais volta a ser como era dantes, a partir do momento em que recebemos a notícia de que temos uma doença grave.
A realidade é aquela. Não há escapatória. Então, o que fazer com tão malfadado facto? Cada um terá a sua receita, única e intransmissível. Dir-se-ia mesmo, improvisada e instantânea, pois só sabemos o que fazer quando somos apanhados, ainda por cima sempre de surpresa.
Eis uma das grandes provocações da doença: para além do estilhaçado caminho que nos obriga a percorrer para se chegar ao tão aspirado final feliz, faz-nos compreender a metamorfose provocada no templo do nosso Ser. Ao mesmo tempo que a doença nos fragiliza e nos acena com a bandeira da finitude, também nos apresenta um outro lado poderoso: o desafio ao auto-conhecimento, ao nosso crescimento pessoal e à nossa capacidade de triagem. Até porque se nada fica como era dantes, ao menos que com as pedras do caminho construamos uma fortaleza de consciência para o valor da vida, com especial foco para as nossas peças-chave e para o que na verdade importa. Afinal, o embate pode ser um impulso para sairmos do casulo e nos transformarmos numa maior e mais colorida borboleta. E é nesta transformação que devemos perceber que não somos aquilo, mas sim a nossa atitude perante aquilo; que não existem finais felizes, mas sim momentos felizes.
Há um misto de experiências indescritíveis, de sofrimentos indizíveis, de medos escondidos e de vulnerabilidades, mas também dos tais pacotes de felicidade, que João Lobo Antunes metaforizou, e de raios de esperança e força, todos escultores do nosso Ser, os quais, perante um processo de doença, nos moldam, ajudam a afinar a bússola da vida e facilitam o despertar de consciência para o que na realidade deve importar.
A doença é uma coisa muito má, que corrói o corpo, e a alma também… Mas há que conseguir extrair doçura do acre da doença, para que a vida continue a ter um bom paladar, para que tenhamos energias para seguir em frente e para que encaremos o tempo com uma esmerada consciência. E só assim, neste desvio da enfermidade, é possível encontrar felicidade. Custa? Sim, custa muito. É possível? Sim, é possível. Mas como? Talvez vendo o bom do mau. O que é o bom do mau? Talvez seja o lado que nos oferece novas oportunidades, aquilo que Miguel Esteves Cardoso exalta: “cada vez que entramos no desconfortável, temos o prazer de descobrir que as flores que nunca vimos antes florescem cada vez que olhamos para elas”.
Mas será preciso passarmos pelo cabo das tormentas para chegarmos a bom porto? Será necessário irmos ao fundo para ganharmos um novo fôlego? Teremos que ouvir o tiquetaque para percepcionarmos a velocidade do tempo?
A felicidade está aqui, aí, agora… A tal travagem brusca pode ser encarada como um abanão para despertarmos para o que sempre esteve ao nosso alcance, de graça, e que às vezes é menosprezado em detrimento do que nos faz passar o tempo. E passar o tempo não é o mesmo que desfrutar do tempo. Até porque uma coisa é existir, outra é Ser.
A cada um cabe assumir o que fazer com a doença. Quem sabe se até é o princípio da vida? Seja lá o que for, uma coisa é certa: algo de bom tem de ser retirado da doença. Do desconfortável há que extrair pequenas alegrias, compositoras da melodia da felicidade. Do sofrimento há que granjear aprendizagem. Da paragem forçada há que haver evolução pessoal. Da terra infértil há que fazer florescer as flores nunca dantes vistas. Só assim faz sentido.
Quem tem a sorte de não ter sofrido embates, que viva! Quem não teve essa sorte, que viva também! Há sempre oportunidades no caminho. A cada um cabe (vi)ver.