Habituado a ouvir falar da polarização como conflito entre dois polos de posições opostas, é curioso pensar na terminologia da física. Aqui falamos da “modificação dos raios luminosos, pela qual, depois de reflectidos ou refractados, já não podem reflectir-se ou refractar-se novamente em certas direcções.”
A psicologia humana também costuma ser muito avessa a fazer o equivalente a “reflectir-se ou refractar-se”, que é o ser crítica das suas opiniões e, eventualmente, retractar-se. Na verdade, quando alguém toma uma decisão, não a toma de forma puramente racional. Há sempre muitos factores misturados nessa adesão a um conceito, como a formação, contexto, ideologia, emoção e até disposição nesse momento. Essa opinião, quanto menos é sustentada em factos, mais vive da emoção e da identidade. Por isso, também resiste e se fortalece ainda mais, quando confrontada com os dados que a refutam, no chamado “efeito-ricochete”. No fundo, os factos são vistos como um ataque à “sua verdade” e, como tal, não podem estar certos. Juntando a isto o factor da identidade, (ou seja, a ideia de que somos as posições que tomamos) temos, não só, a aversão a mudar de ideias, como uma enorme relutância à admissão do erro. Mesmo quando ele é reconhecido internamente.
O “tribalismo”, o clube de futebol, o partido, o caso mediático, o racismo, a xenofobia, não dependem de factos. Criam uma aliança de pessoas, com as mesmas opiniões, contra os factos. Por isso, a discussão que por vezes culpa as redes sociais pela polarização da sociedade, é falaciosa. Sempre houve polarização na sociedade, só muda a definição do tema. Seja futebol, política, música, moda, nacionalismo.
As redes sociais são moldadas à nossa imagem. Não a de cada um de nós, como indivíduo, mas nos movimentos de pessoas, como que vagas de fundo, que se podem inclusive influenciar. O conflito promove empenho e interacção (engagement nos termos do empreendedorismo na moda). As redes ganham com a sua utilização intensiva e não com a sua pureza factual. Os limites ao que permitem ao utilizador resultam da pressão que a sociedade civil exerce sobre as empresas que anunciam nessas plataformas. O Youtube e Facebook foram das plataformas que mais vezes tiveram de tomar medidas restritivas, num balanço entre o número de utilizadores versus o desejo de anunciantes não serem associados a certos conteúdos. O termo usado pelos criadores de conteúdos do youtube, o Adpocalipse (anúncio + apocalipse), mostra como a comunidade foi abalada pelo desejo de agradar às marcas. Curiosamente, como na ideia do Apocalipse, a plataforma até melhorou após a crise. Foi retirado muito do discurso de ódio, a alt-right e as teorias de conspiração foram limitadas e os canais de “esquerda” que eram alvo de ataques em massa ganharam outra resistência e hipóteses de apelo.
Isto mostra como no “mercado das ideias” a moderação pode ter um papel construtivo. Porque as redes sociais têm um poder muito particular no caso da informação, sem escolhas editoriais, misturando opiniões, factos e mentiras. Além disso, permitem a construção de comunidades de consenso, as chamadas câmaras de eco, que fomentam um ampliar e extremar das ideias. A perda de popularidade da teoria da terra plana e o seu decréscimo em “convertidos” devem-se a mudanças no algoritmo por um lado, mas também ao facto de muitos terem sido desviados para as teorias do QAnon.
Uma vida social activa e variada, interagindo com pessoas que poderiam questionar essas ideias, desmontar fontes erróneas de informação, assim como uma educação de qualidade que fomentasse o espírito crítico, poderiam dar uma hipótese para que menos pessoas gravitassem para isso. Porque as vozes oficiais, assim como a imprensa (e os media em geral) foram desprestigiados pela sua subjugação regular a interesses económicos e políticos. E isso só aumenta no contexto actual de descrédito. Qualquer tentativa de jornalismo imparcial é derrubada logo por falta de fundos.
Existe muita gente cujas opiniões se traduzem quase directamente na oposição da opinião que percepcionam nos media. Qualquer notícia, qualquer opinião, é automaticamente refutada. Os casos da teoria da conspiração simplesmente vão mais longe do que os outros “contraditários”. Se falam muito do Covid, é para meter medo. O medo mata, o Covid não mata tanto, foi criado, não mata, a vacina é para inserir biochips, é para matar metade da população, etc. Podemos chegar até à Terra plana, a gravidade não existe, a Lua é oca, a Lua é uma luz. O Deep State, os Illuminati, os Reptilianos, Kennedy Jr. vai voltar, etc. Quem passa uma das barreiras e aceita um mundo onde tudo é mentira, parece destinado a não retornar. No dia que caiu a obrigação das máscaras ninguém veio admitir que estava errado quando disse que “são açaimes que vamos usar para sempre, para sermos os seus escravos”. Quanto muito agarram-se a todos os casos que podem apelar a limitações de liberdade. Esquecem-se agora que profetizaram que estes primeiros passos iam ser substituídos por mais restrições, na direcção do 1984, mas com agulhas.
Quando um culto do fim do mundo falha uma previsão da data do final, normalmente não admitem que estavam errados. Muitos costumam acreditar mais fervorosamente e arranjam uma desculpa, um erro de cálculo e seguem para o próximo suposto fim de tudo. Por sua vez, aqueles que se matam não erram completamente nas suas previsões.
E a polarização EUA – Rússia? Uma ficção ultrapassada, desde o fim da União Soviética, mas muito em voga actualmente. Os russos querem convencer(-se) de que são uma potência a par da América e da China, quando nem conseguem invadir o vizinho do lado. Acho que a Espanha tinha mais sucesso a invadir Portugal.
Os americanos estão preocupados com o poder da China e deixam a Rússia destruir o seu exército e economia, como no Afeganistão. Os países europeus divididos entre apoiar a Ucrânia, como um país soberano e a sua dependência energética da Rússia. Cada país, por sua vez, está dividido entre os que olham para a Ucrânia e os que só são anti-NATO. A Ucrânia a escolher sofrer de pé, em vez de sofrer de joelhos, ocupada e relegada a ser parte da Rússia.
E a propaganda? As ficções/mentiras? Há sempre. Cada lado se agarra à sua. O que sobra no fim disto? Além da polarização? Uma NATO reforçada pela posição da Rússia, uma Rússia diminuída em todos os aspectos, uma Ucrânia destruída. Um aumento do custo de vida europeu que normalmente fica sempre. Enquanto a América e China fazem os seus tratados de Tordesilhas. Contudo, muitos vão dizer até ao fim que a NATO agrediu, que os americanos provocaram, e que a Rússia ganhou aos europeus, sabujos dos americanos. Que o mundo não é bipolar, mas multipolar. Porque as posições de ódio (e amor) não mudam com factos. A polarização na terminologia da física é “a modificação dos raios luminosos, pela qual, depois de reflectidos ou refractados, já não podem reflectir-se ou refractar-se novamente em certas direcções.” Muita gente não quer novas direcções, por mais que sigam para o abismo.