A lente da guerra

Avançou, ele, naquele instante demente, com a voraz esperteza que o caracterizava. Seguia num jipe e sabia que a situação era periclitante. O Vietname era cenário da então Guerra da Indochina, que estava, já, no seu término. A estação, todavia, ainda era sonorizada por militares que, juntos pela dignidade de um povo, se uniam para combater o domínio europeu que comandava aquele estado, na altura – meados do século XX – colonizado pela França.

Ele era Capa. Era fotógrafo e a sua máquina de fotografia era indubitavelmente a sua única relação incondicional.VT_alentedaguerra_4 Fotografar era tudo o que queria fazer, fosse qual fosse a circunstância, fosse qual fosse o momento. O tempo em que decidiu abandonar o jipe, esfomeado por mais uma imagem captada, era de fogo cruzado, numa área assente num cobertor de minas, que não se oporia ao toque de quem por ali se atrevesse a passar. Daí, a explosão foi só a mais natural das consequências. Os que com Capa seguiam viriam-no respirar pela derradeira vez. A sua perna estava dizimada e o hospital local que acolheu o corpo, após tal fatalidade, decretou o óbito, dramatizando aquele que seria o mais inquietante dos seus retratos. Ele tinha 40 anos e corria 1954.

A Primeira Guerra da Indochina fora a última guerra que cobrira, a quinta no seu extenso dossiê bélico. Com efeito, foi precisamente esse, o das guerras, o caminho a que se foi propondo. O de relatar a crueza do extremismo, a tortura nascente da opressão, pontos fortes da época em que teve de viver. Coleccionou aventuras de relevo, assinaláveis (e controversos) cliques e toda a sua idiossincrasia contruíu o ícone do fotojornalismo mundial. Até aos dias de hoje.

Alex Kershaw, autor da biografia de Capa, Sangue e Champanhe, descrevia-o como a antítese de todos os cenários que o próprio Capa conhecera. Aprendera a ser bom vivant esbanjador, fruto desembocado da notoriedade que soube atingir, claramente e relata, igualmente, o inquestionável sentido de humor. O seu nome, Robert Capa, algo espanholado – país com o qual conviveu intimamente (foi lá a sua primeira grande cobertura) – era mais do que um simples pseudónimo. As teorias vagueiam no que à identidade escolhida diziam respeito, mas o seu trajecto profissional (e pessoal) quase apoiam descaradamente a figura de um super-herói amerciano, cujo coração era uma Leica, que o acompanhava, aos solavancos, no peito.

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A imagem de homem impulsivo, ao saltar daquele jipe, quase infantilmente, ilustram bem a figura de dedicação, empenho e coragem. Uma gana imparável de captar uma história que lhe transmitisse veracidade. Até nesta imagem, o contraste entre uma vertigem a roçar o absurdo e um olhar deveras apurado fizeram de Robert Capa um homem querido, desejado por nomes da alta-roda, nas mais diferentes áreas de actuação, como John Steibech, Ernest Hemingway, ou Herbert Matthews. No seu rolo biográfico, não é de descurar o relacionamento amoroso que manteve com a actriz sueca Ingrid Bergmann, mulher casada naquela altura.

Polémicas laterais esquecidas, Robert Capa enobreceu a sua arte não só sendo fundamental testemunha ocular das diversas frentes de batalha que conheceu, como também ao fundar a Agência Magnum, em 1947, juntamente com Henri Cartier-Bresson, William Vandivert, George Rodger e David Seymour. A Magnum inovaria por se tratar da primeira agência a proteger os direitos autoriais dos fotógrafos, servindo também como um meio de cooperação entre homólogos. Já nesta altura, com 34 anos, Robert Capa era nome incontornável no mundo da fotografia. Seguiu para Israel, enquanto responsável pela cobertura dos conflitos entre árabes e judeus, já depois de ter edificado a sua agência, mas, numa espécie de lançamento para tal feito e, puxando a fita atrás, relatou o importante Dia D, celebrado no desembarque das tropas americanas na Normandia, França, feito que Eisenhower, um dia, descreveu como o “auge dos EUA”, a jornada mais cintilante do século.

VT_alentedaguerra_2As fotografias de Robert Capa ilustravam, na sua maioria, uma mensagem que mais parecia encenada e manipulada, a priori, pelo próprio. Talvez tenha sido esse o truque que o fez destacar-se dos demais. Veja-se, a título demonstrativo, a magnificência dos soldados orientais agrupados na Guerra Sino-Japonesa, que contara com os seus disparos fotográficos. A sua arma predilecta – teve uma Kodak de eleição – não era, de todo, tão mortífera como aquelas que costumava apanhar no seu campo de visão. Era, contudo, tão ou mais objectiva e certeira com o alvo. Aquando da Guerra Civil Espanhola, apontada por muitos como a mais importante das que cobriu, na década de 30 – estava a sua carreira em plano ascendente –, fotografou o gélido desespero de uma mulher, em Barcelona, que, ao tocar das sirenes, procurava refugiar-se. Simples foto, cheia de autenticidade. Em pura antítese com as que captaria nas frentes de batalha que acompanhou, em que muitas das quais revelam tropas amedrontadas, à procura de uma exacta reacção aos ataques de que são vítimas.

A Guerra Civil Espanhola , exactamente a que o projectou em larga escala, não foi apenas tema pelas suas estrondosas fotografias. Foi em cenário ibérico que construiu “O Soldado Caído”, mais mito e controvérsia do que um simples retrato. Este não parecia ter ensaio prévio, combinação estipulada. Um homem desfalecia, de braço bem aberto, empunhando a sua arma, evidenciando a fragilidade humana, mesmo quando tão inquestionavelmente escudada. Muitos acusaram Capa de ter criado aquela fotografia, apoiando-se no facto de não terem havido confrontos em Córdoba, onde Capa disse ter fotografado aquele soldado. Capa afirmava claramente que aquele momento expunha a morte do soldado. Muitos afirmam se tratar de uma mera escorregadela. Capa insistira em guardar para si os louros da fotografia. Muitos refutavam até essa teoria, entregando os méritos a Gerda Taro.

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Gerta Pohorylle, melhor dizendo, Gerda Taro é a que esses mesmos muitos apontam como a primeira mulher fotojornalista da história. Aos 27 anos, a alemã acompanhava o périplo de Robert Capa por Espanha. Conhecera-o dois anos antes e embrenharam-se de tal forma pela paixão em comum por fotografia que se envolveram e mantiveram uma relação, durante o tempo em que foi permitido a Gerda respirar. Historiadores, fotógrafos e jornalistas encaram como forte a hipótese de que o símbolo, o carimbo Robert Capa tenha nascido com o envolvimento da foto-jornalista alemã com Robert, ou melhor, Endre, seu nome de baptismo. Em Robert Capa se misturavam conduta e ética profissional que ambos respeitavam cegamente. Bom relato: “if your photographs aren’t good enough, you are not close enough”. Por isso, viviam no limite a profissão que lhes assobiava a alma. Por isso, Gerda calculou mal o risco. Debaixo de um céu sôfrego pelo domínio franquista, aviões lançavam bombas que causaram o pânico. Gerda estava no tejadilho de um carro que fora abalrroado por um tanque desgovernado, atirando Gerda para o chão, sendo tapete para o imparável gigante.

Antes de chegar a Espanha, Robert Capa encontrou casa – e os primeiros trabalhos em fotografia (área pela qual se apaixonou de imediato) – em Berlim, com apenas 18 anos. Nascido Endre Friedmann, no indivisível império Austro-Húngaro, que, na verdade viria a dissipar-se no termo da Primeira Guerra Mundial, deixava Budapeste na procura de objectividade na sua vida. Entrando no mundo das lentes, passou a ter, fundamentalmente um terceiro olho, que lhe vinha acrescentar um super-poder, pelo qual Endre se destacou, dando vida a Robert Capa. E destacou-se ao fotografar, com direito a encómios futuros, o exilado Leon Trotsky em Copenhaga. Destacou-se ao aproveitar o início da corrente nazi na Alemanha e ao crescer, a par, com a fama de Adolf Hitler. Destacou-se, ao fugir para França, fugindo ao nazismo que viu emancipar. Era judeu. Foi fotógrafo. Relatou o mundo. Era Endre, sem capas.

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