Uma padaria de bairro é um centro social. É o local onde se destilam as mágoas, onde se descansa das mazelas e onde se alimenta a alma com os sábios conselhos ouvidos. É uma espécie de fermento humano que cresce tão alto que costuma aconchegar um bairro inteiro. É um centro de distribuição de tudo e mais alguma coisa.
Aos poucos as pessoas tornam-se todas conhecidas e, mesmo sem o querer, acabam por se importar com as vidas alheias. São salas de convívio onde o dia a dia é um fantasma que se senta ao lado de quem lá trabalha. Assim, sem se dar conta, a senhora que coloca os pães nos sacos embrulha, igualmente e com carinho, as vidas de todos que por lá passam.
Hoje em dia, as grandes superfícies já vendem de tudo, mas o atendimento personalizado, a atenção que é dispensada a cada cliente, não pode ser comparável com o que acontece nas lojas de rua onde tudo se sabe e se comenta. No fundo são memórias colectivas que se preservam. Há um passado que deve ser mantido para aquecer as almas que vão esfriando.
De há uns tempos a esta parte comecei a ir à padaria da rua onde moro. Quem lá estava atendeu-me com frieza. Talvez por pensar que era mais uma que teria de decorar a cara ou porque estava mal disposta naquele dia. Foi a segunda hipótese. O seu comportamento mudou na sequência dos dias. Um dia disse-me que seria substituída porque ia tratar da sua saúde. Ainda bem pois estava mesmo a precisar.
Na manhã seguinte vi outra cara. Gostei logo dela. Uma sensação que não se sabe explicar, mas que nos é agradável. Não como se me tivesse visto crescer, que nunca seria o caso, mas como se partilhássemos algo de íntimo. É uma excelente pessoa. Continua as aventuras da antecessora, levando o pão a quem não pode sair de casa e cuidando das auras de todos os outros.
Mora longe, mas nunca falha a entrada. Sabe o que cada cliente gosta e tem sempre uma atenção para cada um. É daquelas pessoas que ainda sabe fazer contas de cabeça e o sorriso é a sua imagem de marca. Uma querida, um doce de pessoa. Acreditam que não sabia o nome dela? O certo é que um dia perguntei e foi mais outra conversa das boas.
Num sábado de manhã, estava a falar com três gaiatos que a ouviam com imensa atenção. Não teriam mais de oito anos, mas davam conta dos recados. Levavam uns bolinhos na mão e agradeciam muito. Pareciam sintonizados. Começou logo por me dar um dos seus sorrisos e uma justificação tão querida quanto maravilhosa:
– Tadinhos dos meninos. Todos os dias trazem o dinheiro certo para o pão, mas ficam a olhar para os bolos (que custam 50 cêntimos). Dá-me pena. São pessoas honestas, mas o dinheirinho está todo contado. E filhos são imensos! De vez em quando dou-lhes um bolinho, destes pequeninos, está a ver? Ficam todos contentes! Não me custa nada e os meninos, assim, vão para casa satisfeitos. Olhe que lhes digo sempre para estudarem e se portarem bem.
A alma saltou-me logo! Que pessoa tão sensível e querida! A padaria até brilhava por ter alguém como ela a cuidar dos clientes. Comprei o pão do costume, que a senhora faz o favor de guardar religiosamente e apeteceu-me tanto ficar ali. Alguém que se preocupa assim só pode ser grande!
Entretanto entrou uma senhora a queixar-se disto e daquilo e ainda mais as botas perdidas no deserto, o Judas e um chapéu de cowboy e vim embora. Ela alampou-se por lá. Antes de sair ainda me perguntou se vinha na segunda-feira. Penso que já é um ritual saudável. Sim, como podia falhar?
– Ai, que tenho que ir ver da minha princesa. Espere só um momento, sim?
Saímos as duas. A princesa é a senhora que mora em frente e vive sozinha. Tem 97 anos e é independente. O filho quis que fosse para um lar, mas ela não quer. Gosta de estar na sua casa. Entendo-a. Com tantos mimos e tanto amor, que lhe passam pela janela, que função teria esse lar? Uma pasmaceira.
São estas migalhinhas de solidariedade e de amor que fazem os dias melhores e diferentes. Quando se dá um pouco de si, cheio de boa vontade, os outros enriquecem, mas a fonte fica ainda mais forte. Princesas ou rainhas, sejam o que for, são apenas pessoas de coração tão grande que gostam de ajudar.
É o tal fermento que cresce em si e faz com que o coração seja cada vez maior e mais perfeito. Que seria da vida sem estes pequenos anjos salpicados de farinha? Ficávamos bem mais pobres e a vida deixava de fazer sentido.
Com a pandemia a padaria fechou durante muito tempo. Voltou a abrir, mas a cara que se via era outra. A vida também e as medidas novas fizeram com que estas tão importantes relações se quebrassem. Felizmente que nos dias de menos movimento ainda se podia ficar mais um pouco e dar uns dois dedinhos de conversa.
Talvez não fosse para continuar e a padaria, aquele local de culto, onde agora uma cara muito carrancuda atendia ao balcão, fechou de vez. O pão é para o corpo, mas serve igualmente a alma, o conforto de saber quem está e como está, o tempo de pausa e de repouso. Não se sentiu a falta da senhora que nunca esboçou um sorriso e que tratava todos como se fossem enteados do ex-marido, com raiva e muito ódio.
Durante uns tempos não houve local de peregrinação, mas, mais tarde, alguém pegou na loja e a converteu num café que vende pão. Do mesmo tipo, mas com valor acrescido. Da primeira senhora nunca mais se soube nada, mas estas que lhe herdaram o lugar, apesar de serem muito mais jovens, ainda precisam de fazer o estágio especial para lhe igualar o tacto.
Por mais que queiram, vai ser difícil quebrar a corrente do falar, do comentar, do querer saber e dos pedaços de alegria que são feitos com tanto fermento de amor. Estes pequenos doces caseiros são tão gratificantes como o tal pão que, depois da conversa acabada, chega a casa e é colocado na mesa para dar ânimo ao dia.