A minha avó correu para fora de casa, a urgência desafiava a gravidade, os seus pés voavam. Eu seguia-a, tropeçando na pressa. Nenhum som interrompia o meu medo. Nem sequer o meu coração a tentar furar os meus ouvidos, o meu peito, a minha garganta. Nenhum som numa manhã de Verão. A minha avó corria em direção à horta. Não sabia, só que soube. Não sabia, não queria saber, só que sabia. Como as mães sabem, penso agora.
Ao longe, o meu pai pendurado numa árvore.
A minha avó: uma mãe que vê o filho em apuros.
Nem um som.
A minha avó a correr pela horta, a tentar chegar a ele. O sol forte batia-me no corpo, mas eu tremia.
Nem um som.
A minha avó a endireitar a cadeira que deveria estar na cozinha e a subir. A minha avó a esticar-se o máximo que podia, os pés da cadeira a enterrarem-se, o ramo da laranjeira cada vez mais longe.
Nem um som.
A minha avó a pôr o braço esquerdo à volta da cintura do meu pai. A cortar a corda com a mão direita, usando o canivete que levava sempre no bolso do avental. O meu pai a tombar para cima das costas dela como se adormecesse. Ela a dobrar-se com o peso dele, sem o deixar cair: uma mãe que levava o filho ferido.
Nem um som.
A minha avó a descer da cadeira, quase a sair. Dobrada, a arrastá-lo para fora da horta.
Eu não me lembro de ter ouvido nenhum som até esse momento. O momento em que a minha avó se transformou em animal ferido. Era uma mãe que ia salvar o filho que já não podia ser salvo.
Passaram por mim. Fui atrás deles, passos temerosos, mal sentia o chão. As memórias são traiçoeiras: hoje lembro-me da cara inchada do meu pai, arroxeada, e de ter pensado que não era ele. No entanto, o mais provável é que eu tivesse fechado os olhos. O que não vemos, por vezes, impressiona-nos muito mais.
Ela deitou-o ao pé do tanque e molhou-lhe a cara com a mangueira, murmurando o seu nome. Era um salvamento e uma agressão. Eu de costas a ouvir o nome dele. Mas não. Não era o meu pai. Tinham-se enganado.
A voz da minha avó a dizer o nome dele, a repetir, a repetir, a chamá-lo para ao pé dela.
O grito dela despedaçou-me para sempre. Uma boa parte desses fragmentos ficou lá, não fui capaz de os encontrar nunca mais. Provavelmente foram enterrados com ele, enterrados com a maior parte dela também.
A minha avó nunca se voltou a endireitar. Até morrer, andou desmoronada, em ruínas. Não sei se foi por causa dos pedaços que lhe faltavam ou pelo peso que o filho morto lhe deixou no corpo.